domingo, 5 de abril de 2020

A fragata D. Fernando II e Glória

A fragata D. Fernando II e Glória travou várias batalhas. A maior foi contra o esquecimento, 30 anos encalhada no «Mar da Palha». Após um longo processo de restauro, está de novo no Tejo, agora transformada em museu. E à espera da sua visita.
[Texto de Margarida Henriques – Fotografias de V.E.R. Produções e Fotografia]
In: “Notícias Magazine”, 1998
                Fragata D. Fernando II & Glória - Almada | Mapio.net
Durante os 33 anos em que navegou, a maior parte das vezes sulcando as águas entre Goa e Lisboa, a Fragata D. Fernando II e Glória percorreu cerca de 100 mil milhas, o equivalente a cinco voltas ao Mundo. Construída para ser navio de guerra, acabou por navegar mais como charrua — navio de transporte pouco artilhado. Mas travar uma série de "guerras" parecia ser o seu destino. Foi transformada em navio de transporte, passou a escola de artilharia e mais tarde a orfanato, sede da Obra Social Fragata D. Fernando. Foi nessa altura que um violento incêndio a destruiu quase por inteiro e a remeteu para o "Mar da Palha", onde ficou 30 anos encalhada e à mercê do esquecimento de uns e do vandalismo de outros. Agora, depois de um longo processo de reconstrução e restauro, a Fragata D. Fernando II e Glória está de novo preparada para cruzar os oceanos, se necessário for. Para já, vai marcar presença na Expo'98, para depois voltar para junto da Torre de Belém, onde vai ficar atracada com a função de museu flutuante.
Construída em Damão e lançada à água em 22 de Outubro de 1843, a história da fragata encerra em si uma série de marcos: construída numa altura em que se transitava da vela para o vapor, foi o último navio à vela da Marinha Portuguesa e a última encomendada por Portugal aos estaleiros do antigo Arsenal Real de Marinha de Damão, e foi a última nau a fazer a Carreira da Índia — a linha militar regular que, durante mais de três séculos, fez a ligação entre Portugal e a Índia. O nome que recebeu é uma homenagem a D. Fernando, marido da rainha D. Maria II, e a Nossa Senhora da Glória, de especial devoção entre os goeses, e a quem foi entregue a sua protecção.
Em 1845 fez a sua primeira viagem e, durante os cem anos que esteve ao serviço da Marinha Portuguesa, percorreu o equivalente a cinco voltas ao Mundo. Partiu de Goa para a sua viagem inaugural em 2 de Fevereiro desse ano e chegou ao Quadro dos Navios de Guerra no Tejo em 4 de Julho. A partir daqui, a D. Fernando II e Glória participou numa série de missões e viagens à Índia, Moçambique e Angola, para levar a estes antigos territórios portugueses unidades militares do exército e da marinha, colonos e degredados que, geralmente, iam acompanhados pelos seus familiares. De todas as missões que lhe foram confiadas, as mais importantes foram a participação como navio-chefe de uma força naval na ocupação de Ambriz, em Angola, e a colaboração na colonização de Huíla, onde abdicou das suas funções de navio de guerra para transportar ovelhas, cavalos e éguas do Cabo da Boa Esperança para Moçâmedes.
Vinte anos mais tarde, em 1865, a fragata substituiu a nau Vasco da Gama como escola de artilharia, mas só fez a sua última missão no mar em 1878, altura em que uma viagem de instrução de guarda-marinhas a levou aos Açores e em que, pelo meio, salvou a tripulação da Laurence Boston, uma barca americana que se incendiara.
É na altura em que a fragata D. Fernando II e Glória se transforma em Escola de Artilharia Naval que perde parte da sua beleza e características próprias. Os antigos mastros dão lugar a três deselegantes mastros inteiriços e, em cada bordo, são construídos dois redutos, para colocação de peças de artilharia modernas.

A saída dos oceanos
Em 1940, e apesar de sempre terem sido elogiadas as suas capacidades náuticas, a marinha decidiu que a fragata já tinha cumprido a sua missão nos mares e transformou-a em sede da Obra Social da Fragata D. Fernando, criada para acolher rapazes de famílias pobres, que ai recebiam instrução escolar e treino de marinharia, com o objectivo de depois entrarem nas marinhas de guerra, do comércio e da pesca.
É então que, em 1963, um violento incêndio quase destruiu o oitavo navio de guerra mais antigo do mundo, tendo-se perdido todo o seu recheio: documentação, desenhos, livros de bordo com as assinaturas dos passageiros mais ilustres que por lá passaram, entre muitas outras relíquias. "A fragata ficou em muito mau estado e foi rebocada para o «Mar da Palha», onde ficou 30 anos, encalhada e adornada sobre bombordo. Durante essa época foi-se degradando ainda mais, não só por acção do tempo mas também por acção das pessoas que iam lá buscar madeira (a teca, que é uma madeira muito cara e muito boa), e o navio foi sendo delapidado aos poucos", explica Francisco Salvado, o engenheiro do Arsenal do Alfeite responsável pela gestão do projecto da Fragata D. Fernando. E tudo aquilo que não se perdeu no incêndio — armamento e instrumentos náuticos — perdeu-se nesta altura.
Só em 1991, e depois de muitas "guerras" entre as partes envolvidas no processo, a marinha e o governo optaram pela recuperação do navio. Um projecto que só foi viável com o apoio de mecenas.
 
Mergulho no passado
O navio teve de ser desencalhado. Isso foi uma manobra feita pelo Arsenal. Com o auxílio de mergulhadores retirou-se todo o lastro que estava lá dentro — cerca de 300 toneladas de areia e lodo. Tivemos de dragar um canal até ao Alfeite, para que o navio pudesse ir a reboque. Depois foi construída uma série de flutuadores em fibra de vidro, que deram impulsão suficiente para que o navio descolasse do fundo. Com grande esforço, lá se conseguiu trazê-lo para aqui", recorda Francisco Salvado.
O passo seguinte foi desmantelar o navio e reconstruí-lo em Aveiro, na Ria-Marine. Da fragata original ficou toda a parte do fundo, uma vez que conseguiram recuperar essa madeira e o cobre que a forrava, sendo depois reconstruída em cambala por cima desta parte antiga. "Ao todo, aplicaram-se na sua reconstrução cerca de 900 toneladas de madeira — o que equivale a cerca de três mil toneladas, uma vez que o aproveitamento da madeira é da ordem de um terço —, e 25 toneladas de pregos. Só para fixar o forro de cobre foram necessários 140 mil pregos, todos feitos à mão. Na coberta, os pavimentos foram calafetados com a técnica tradicional que se usava naquela altura: estopa e breu. Nos de cima, como vão estar mais expostos ao tempo e vão ser mais visitados, foram utilizadas técnicas modernas, explica o responsável pelo restauro da fragata.
No ano passado a fragata pôde finalmente voltar a navegar e regressar ao Tejo. Foi reflutuada e rebocada até Lisboa, onde recebeu os últimos acabamentos no Arsenal do Alfeite: o apetrechamento interno, a colocação dos mastros, do aparelho bélico, do mobiliário e de uma série de pequenos pormenores.
Hoje, entrar na fragata D. Fernando é o mesmo que recuar cem anos na história e ver como era a vida no mar em 1850. Desde o paiol dos espíritos, onde se guardavam as bebidas alcoólicas para o tratamento de doentes, ao paiol dos víveres e dos frescos, passando pelos do carpinteiro, do mestre, das bagagens dos oficiais, do velame e da pólvora, e a camarinha do comandante, os camarotes do cirurgião e do navegador e a botica, tudo foi reconstruído como tinha sido criado no século XIX, e decorado com peças da época.
Nada foi deixado ao acaso. Exemplos disso são a botica, onde se podem encontrar os livros de medicina da época e frascos antigos para guardar os medicamentos, e o paiol da pólvora, que foi construído seguindo os mesmos moldes do século passado.
Pronta para voltar a navegar, a D. Fernando está agora condenada a pequenos trânsitos. Os marinheiros de hoje exigem um mínimo de conforto e, isso, a fragata não pode oferecer. Ou perderia todo o encanto dos navios de outrora.

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