domingo, 26 de maio de 2019
Pedro Barroso - Viva quem canta
Pedro Barroso, 67 anos, é uma das míticas vozes da música de contestação do período do 25 de abril. Quase meio século volvido, retirado do meio mediático e com a saúde a declinar, permanecem em Pedro Barroso as canções com história e as memórias daquele tempo em que se levou a boa música às massas isoladas e sem instrução. Colega de Zeca Afonso e de tantos outros que o acompanharam, resistiu à mudança dos tempos e de mentalidades, ao declínio da música ligeira e dos versos com subtexto em prol da superficialidade do espetáculo. A viver em Riachos, Torres Novas, Pedro Barroso tem mantido os concertos e a edição de discos, tendo inclusive publicado um livro de memórias. Reconhece-se, porém, no crepúsculo da vida.
sábado, 25 de maio de 2019
Margem Sul
Almada Delimitada - séc. XIII ao séc. XIX
A preocupação régia em valorizar as zonas regionais pouco povoadas em pontos estratégicos do Sul do país, recentemente conquistados aos muçulmanos, e chamar à sua posse Almada e o seu termo, constituiu o principal motivo que levou o Rei D. Dinis a conceder uma carta de escambo – carta de permutação – com a Ordem de Santiago, a 1 de Dezembro de 1297.
Almada na posse real vai assistir à primeira delimitação oficial do território almadense, através do Stormento de Devison, a 4 de Dezembro de 1297.
Almada era, então, uma das mais representativas comunidades ribeirinhas da margem sul do Tejo. As mais antigas freguesias da vila eram Santa Maria do Castelo de Almada e Santiago, cujas igrejas e padroados estiveram ligados à Ordem Militar de Santiago.
A vila de A1mada era, no decorrer dos tempos, o espaço urbano mais privilegiado no Termo, ou seja, o centro administrativo, militar, religioso, de produção de bens e de comércio. Cacilhas era o seu principal porto marítimo da região que proporcionava o fácil escoamento dos produtos para Lisboa.
Em 1513, D. Manuel I atribui a Almada novo Foral, que proporciona transformações económicas, sociais e políticas. As primeiras referências da população e das freguesias de Almada começam a ser registadas em documentos cadastrais.
O Termo de Almada adquiriu uma expressão significativa aquando da expansão marítima portuguesa, sendo parte integrante da zona de influência económica de Lisboa.
A população da vila e termo de Almada rondava, no século XVII, em cerca de 2.500 habitantes. Na época filipina, assistiu-se a diversos fluxos migratórios oriundos de várias regiões do reino, como Estremadura, Beiras, Entre Douro e Minho, Alentejo e Algarve. Verificava-se um movimento de deslocação populacional de Norte para o Sul.
Com a reforma administrativa de 1836, no reinado de D. Maria, foi desanexado grande parte do território de Almada, cerca de metade da área territorial passou a integrar o novo concelho do Seixal, constituído pelas freguesias de Seixal, Arrentela, Paio Pires e Amora.
No seguimento da reforma administrativa de 1878 permaneceram duas freguesias: Almada (com a união de Santa Maria do Castelo e a de Sant’iago) e Nossa Senhora do Monte de Caparica.
Em 1898, Amora e Corroios são desanexados da área administrativa e política do Concelho de Almada.
Os Bravos de Almada
Porque não pelejou mais a frota com a de Castela, e como EL REI mandou combater Almada
Paços do Concelho
Tendo o Mestre o sentido e o cuidado de fornecer bem a sua frota de gentes para pelejar contra a de Castela, pelas razões que já foram tocadas, começou a preparar com os da cidade, para a sua defensão e reforço, tudo o que viu que cumpria a tão grande feito, e as contrárias coisas que acontecer podiam houve que as deixar nas mãos da sorte; e esperando tempo oportuno para se pôr isto em obra, sobreveio a elRei de Castela mais frota da que até então tinha, convém a saber: vinte e uma naus e três galés armadas, não havendo ainda uma semana que a peleja das outras naus ocorrera.
Assim que elRei tinha, em toda a sua frota, sessenta e uma naus, afora as carracas, e dezasseis galés e uma galeota, as quais mandou deitar âncora ao longo da cidade desde Cata-que-farás até à Porta da Cruz, segundo a ordenança que tendes ouvida. E vendo o Mestre a desigualdança da frota, e as grandes avantagens que elRei de Castela tinha em semelhante feito, conveio em desistir do que tinha cuidado.Neste comenos, havendo já cerca de dois meses que a vila de Almada estava cercada, desde aquele dia em que Diego Lopes foi preso como dissemos, era o lugar muito afincado de combates que lhe davam os seus inimigos da parte da terra onde tinham seu alojamento, que da outra, do mar, nenhuma coisa lhe podiam empecer pela grande altura do monte, salvo no tolher da água, que lha vedaram, o qual lhes foi maior guerra que outras armas ou cavas, ou ainda uma poderosa bombarda com que lhes fizeram alguns tiros, de guisa que os que ali dentro estavam, que mantinham a voz do Mestre, começaram a passar coisas ásperas de sofrer, das quais é bem que em breve saibais, pois ainda não foram tocadas.
Ora assim foi que, quando a frota de Castela veio sobre Lisboa, os moradores do lugar se acolheram todos ao castelo, e a dois barcos baleeiros que tinham, nos quais às vezes levavam mantimentos à cidade, quiseram-nos as galés tomar em terra que é abaixo do castelo, onde estavam em seco, e para os impedirem naquela hora foram muitos feridos, e não os puderam levar, e depois queimaram-nos os do lugar para não os cobrarem os castelhanos. Na vila havia assaz de gente que a pudesse defender, além de outros de fora que se acolheram a ela porque se vinham juntar ao Mestre e não o puderam fazer por causa da frota.
Eles tinham mantimentos de pão e vinho e carnes e doutras coisas para seis meses e mais, mas não havia outra água salvo a duma pequena cisterna, e sobre esta foi posta grande guarda, dando-se a cada uma pessoa por dia uma canada (1,5 litros) e não mais. E não embargando isto, os da vila saíam cá fora a esperar os castelhanos em certos passos, os quais andavam à forragem pelo termo e em Sesimbra, e matavam e feriam neles de tal forma que já não ousavam de ir senão muitos juntos, e também esperavam os que iam nos batéis a Arrentela e à Amora para roubar, de guisa que um dia mataram a mais de trinta, todos juntos, num lameiro, querendo-se eles recolher aos batéis e não conhecendo o local; e esta saída e tornada, que faziam quando queriam, era pela porta da barroca a que chamam Meijonfrio e que está contra o mar.
E sendo muitas vezes combatida e não lhe podendo fazer coisa de que grande nojo recebesse, mandou elRei que lhe fizessem uma cava por sob a terra, a qual começaram de longe, no arrabalde, e que ia direita a uma alta torre que está sobre a porta do castelo, para a pôr em contos (meter-lhe escoras) e com fogo a derribar, segundo se costuma, e os de dentro souberam disto parte. E onde os castelhanos cuidaram que iam fundo por sob a terra, foram sair com a boca da cava à cárcova (vala) da barbacã, que os de dentro já tinham cavado muito mais funda do que dantes era, e ali pelejaram uns com os outros e foi morto o mestre da cava, e feridos alguns duma parte e doutra, de modo que não se puderam dela mais aproveitar, a qual hoje em dia ainda lá está e pode-se ver.ElRei houve grande azedume quando isto soube, e foi em pessoa à dita vila com parte das suas gentes e capitães para a poder combater à sua vontade, e mandou que lhe fizessem no campanário da igreja de Santiago, que é perto do dito castelo, um cadafalso forte de madeira donde ele visse toda a vila e como se a combatia.
E quando foi o dia do combate, pôs-se elRei naquele cadafalso e fez toda a sua gente combater o lugar todo à volta pelo lado da terra, porque da parte do mar não podia ser pela grande aspereza da altura do monte, e foi combatido com gentes de armas e de pé, e trons e bestaria, e fundas de manganela e mantas e outras artelharias de combate desde a hora de terça até depois do meio-dia. Os da vila, sentindo que elRei estava naquele cadafalso, se bem que dele não houvessem combate salvo de setas, resolveram atirar-lhe com um trom, e quando elRei, enfadado, se partia para comer, sendo na igreja, disparou o trom e deu no cadafalso (andaime), e matou dois homens e feriu três, e mandou então elRei afastar as gentes e não combateram mais por aquela vez; e foram mortos e feridos alguns castelhanos, e, dos portugueses, mortos um filho de João Lobato e Diego Domingues, filho de Domingos de Santarém, e outros foram feridos de pedras e de setas, porque dos trons que os inimigos queriam deitar lá para dentro não recebiam dano, visto que todos passavam e iam dar na água por azo da estreitura do lugar. Depois mandou elRei levar uma bombarda que deitava uma pedra que pesava mais de cinco quintais (1 quintal maior = 44 kg), e a primeira pedra que lançou foi muito baixa e não fez nenhum nojo, e ao segundo tiro, que não empeceu nada, quebrou de tal guisa que não se pôde mais aproveitar.
Vendo elRei que não se queriam dar por nenhuma guisa, prometeu de nunca preitear com eles, mas que todos andassem à espada (fossem passados a fio de espada), e deixou sobre o lugar Pero Sarmento e João Rodriguez de Castanheda com gentes em grande abundança, e mandou-lhes que os combatessem a cada dia, e ordenou de partir-se dali.
DAS COISAS QUE PASSAVAM OS DE ALMADA POR MINGUA DE ÁGUA.
Tornou-se elRei para o seu arraial, jurando e prometendo que nunca lhes daria vagar de serem combatidos até que por força fossem entrados sem nenhuma preitesia.Onde sabei que dentro da vila havia uns quarenta cavalos, afora outras bestas de serventia, e quando a água lhes foi minguando, houveram conselho de não darem de beber às bestas, e foi tanta a sede nelas que ali onde mijavam os homens iam as bestas chuchar e comiam daquela terra molhada. Então ordenaram de os lançar fora do lugar para os não verem morrer, e de maneira a que os castelhanos não se prestassem deles, lançaram-nos todos pela barroca abaixo contra o mar, e cada um lançava o seu, e assim foram as bestas todas mortas. E por míngua da água que não tinham, amassavam o pão com vinho e nele igualmente coziam a carne e o pescado, e comiam o pão enquanto era quente, porque logo que era frio não o podia ninguém comer, e assim com outras viandas.
Nisto acabou a água da cisterna, e foi-lhes forçoso passar a beber outra muito de aborrecer, convém a saber: a que jazia na alcárcova e que chovera durante o Inverno, onde as mulheres, antes de serem cercados, lavavam as roupas infundiçadas e os trapos dos meninos, a qual era verde e muito suja, e jaziam ali bestas mortas e cães e gatos, que era nojosa coisa de ver, e de noite saíam homens de dentro, por cordas, a furtar daquela água. E quando os castelhanos souberam que dessa guisa a tomavam, trabalharam-se de a guardar, e muitas vezes aconteceu, quer de noite quer de dia, serem mortos e feridos por causa dela alguns duma parte e doutra; e esta água coziam-na (ferviam-na), e cozida a bebiam e amassavam com ela.
Depois que esta água minguou, trabalharam-se de haver da água do mar (do estuário do Tejo), e de tinas que tinham postas na ribeira para apanharem água doce, e desciam pela barroca por um caminho que fizeram para tomar daquela água, e ao primeiro dia trouxeram-na à sua vontade, e os castelhanos, como o souberam, puseram guarda nela. E os da vila, indo lá, acharam os castelhanos que a guardavam, e eles não eram mais que dezassete e, dos inimigos, eram bem um cento os que esperavam escondidos entre os penedos, e pelejando por causa dessa água foram mortos três portugueses e os restantes catorze ficaram muito mal feridos de setas e de dardos, e não puderam levar mais que dois odres meios de água, e os castelhanos quebraram-lhes as tinas.Nisto morria já a gente com sede, tanto homens e mulheres como moços pequenos, e alguns dos que a ela se haviam acolhido lançavam-se fora da vila de noite e fugiam para conservar as suas vidas. E faziam do lugar toda a noite ao Mestre muitas almenaras de fogo com que lhe davam a entender o grande afincamento em que eram postos, porque doutro modo não lho podiam fazer saber, sendo assim cercados por mar e por terra.
O Mestre e os da cidade bem entendiam o grande trabalho em que eles eram postos, mas não lhes podiam prover de nenhum acorro, contudo o Mestre mandou certa noite uma barca ligeira com um trom que atirava muito, e pólvora (I), e bestas e outras armas para defesa, e aconteceu que foi aportar onde jaziam batéis de Castela e foi filhada com as armas, e presos todos os que a levavam. Então um cavaleiro gascão que dava pelo nome de mosse Ymam, muito homem de prol e bom homem de armas, tinha cativo Afonso Galo, que era Regedor da vila e fora aprisionado aquando daquela primeira escaramuça em que também foi preso Diego Lopes Pacheco. E este cavaleiro trouxe ali atado por uma corda Afonso Galo, até à beira do castelo, e disse aos de dentro que bem sabiam como aquela vila, e todo o reino de Portugal, era de direito delRei de Castela, e como muitos lugares do reino se lhe deram e davam, mas que eles com perfia (teimosia e deslealdade) não queriam fazer como faziam os outros, e que, ao invés, fizessem de guisa a não quererem ser traidores e dessem a vila a elRei de Castela, que lhes faria por isso muitas mercês. E que ele trazia diante deles aquele Afonso Galo que era Regedor da vila, e que fizessem o que ele lhes dizia senão que havia por força o dito Afonso Galo de morrer, e que não quisessem ver a sua morte nem a dos outros que eram presos, que elRei os mandava matar a todos.
Os da vila responderam que bem os podia elRei matar, se quisesse, mas que à vila não a dariam por coisa alguma que fosse, e que se arredasse dali com sua honra e se fosse com o seu prisioneiro. E insistindo ele nas suas razões para que todavia dessem a vila a elRei, fizeram prestes um trom pequeno e atiraram-lhe dentre as ameias, e foi tal a sua ventura que o tiro deu com ele morto por terra, e ficou Afonso Galo vivo e em pé, da qual morte elRei houve grande queixume, jurando que todos eles haviam de morrer à espada.
Nota (I): Bom, dado que, ademais dos tiros certeiros a curta distância no palanque do rei castelhano e na pessoazinha de monsieur Ymam, também agora aqui descobrimos a pólvora, parece-nos não haver dúvidas de que Fernão Lopes, quando fala de bombardas e trons, está-se mesmo a referir a armas de fogo e ao respectivo uso antes da batalha de Aljubarrota. Assim sendo, não tem nenhum fundamento no texto de Lopes a velha tese estapafúrdia de que os portugueses teriam visto pela primeira vez um canhão naquela batalha.
COMO OS DE ALMADA DERAM A VILA A ELREI DE CASTELA.
Sendo os de Almada em tão grande aperto por míngua da água que não podiam haver, acordaram em que mandassem recado ao Mestre, mas não tinham remédio nem conselho de como o pudessem mandar. De igual modo, o Mestre, que bem suspeitava das atribulações em que eram postos, desejava muito de saber em que ponto eram os seus feitos, mas não tinha jeito nem sabia maneira de como disso pudesse haver cumprida certidão. Então um homem dAlmada que viera na frota do Porto disse que lhe levaria a nado o recado, se o Mestre lho quisesse mandar.Ao Mestre prouve disto muito, e disse-lhe por palavras as coisas que lhes havia de dizer, e mais lhes escreveu por carta o que entendeu para seu serviço, e uma noite chegou aquele homem à ribeira do monte e subiu por aquele escuso caminho da barroca que bem conhecia, onde chamam Meijonfrio, e falando aos do castelo que velavam, espantaram-se estes quando o ouviram e, conhecendo-o, abriram-lhe a porta, folgando muito com ele, e quando viram que viera a nado houveram-no para muito; e a conclusão do recado, por palavra e por escrito, era que lhe mandassem dizer em que ponto estavam, e que se aguentassem o mais que pudessem. E eles lhe fizeram saber quanto haviam passado até ali, e que não tinham água nenhuma nem sabiam que remédio fazer às suas vidas, e com este recado se tornou logo de noite aquele homem a nado.
Vistos pelo Mestre os seus padecimentos a que não se podia pôr remédio, ao cabo de três dias tornou aquele homem outra vez com recado em que o Mestre mandava dizer que lhe pesava muito do que tinham padecido, e, pois que assim era, que preiteassem o melhor que pudessem com elRei de Castela e lhe entregassem o lugar. Então decidiram mandar dois homens bons com recado a elRei de como queriam ser seus e lhe dar a vila; porém, primeiro que isso, nadou aquele homem o rio que é entre Lisboa e Almada seis vezes a levar e trazer respostas, e sempre de noite.elRei sabia já por um homem que fora tomado, dos que fugiam do lugar, como não tinham água nenhuma, e que morreram muitas crianças e morriam mais a cada dia, e que haviam por força de se darem ou morrerem todos, e tinha vontade de não preitear com eles, e tal resposta deu aos que lá foram. E havendo já três dias que lá andavam, elRei não os queria ver e, querendo-se tornar, mandou-os chamar a Rainha, e com eles pediu a elRei, por mercê, que lhes perdoasse e preiteasse com eles.
E a elRei prouve disto, e foi a preitesia que elRei lhes segurava os corpos e haveres, e que cada um estivesse em sua casa e fosse senhor do seu sem lhes ser tomada nenhuma coisa, e assim lho cumpriu. E aos dois dias depois do trato, primeiro dia de Agosto, elRei e a rainha foram em galés a Almada, e foi-lhe entregue a vila, e as chaves dela, sendo ele recebido por senhor; mas padecendo a vila primeiro, como dissemos, tantos apertos e atribulações tais como nenhum outro lugar de Portugal padeceu pelo serviço do Mestre e por manter a sua voz.ElRei e a Rainha comeram dentro da vila, e ele chamou os do lugar, dizendo-lhes que lhe fossem leais e que lhes daria muitas mercês, e alguns lhe pediram algumas coisas, e ele outorgou-lhas, e mandou que os tabeliães escrevessem em seu nome e se chamassem seus, e deixou por juízes os que o eram antes, e pôs na vila como regedor um cavaleiro que chamavam João Bravo, e para guarda dela as gentes e os capitães que antes a tinham cercada, e logo nesse dia se tornou para o seu arraial.
Escrito por Fernão Lopes
Foto(Almada Virtual)
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software livre.
Assim que elRei tinha, em toda a sua frota, sessenta e uma naus, afora as carracas, e dezasseis galés e uma galeota, as quais mandou deitar âncora ao longo da cidade desde Cata-que-farás até à Porta da Cruz, segundo a ordenança que tendes ouvida. E vendo o Mestre a desigualdança da frota, e as grandes avantagens que elRei de Castela tinha em semelhante feito, conveio em desistir do que tinha cuidado.
Neste comenos, havendo já cerca de dois meses que a vila de Almada estava cercada, desde aquele dia em que Diego Lopes foi preso como dissemos, era o lugar muito afincado de combates que lhe davam os seus inimigos da parte da terra onde tinham seu alojamento, que da outra, do mar, nenhuma coisa lhe podiam empecer pela grande altura do monte, salvo no tolher da água, que lha vedaram, o qual lhes foi maior guerra que outras armas ou cavas, ou ainda uma poderosa bombarda com que lhes fizeram alguns tiros, de guisa que os que ali dentro estavam, que mantinham a voz do Mestre, começaram a passar coisas ásperas de sofrer, das quais é bem que em breve saibais, pois ainda não foram tocadas.
Ora assim foi que, quando a frota de Castela veio sobre Lisboa, os moradores do lugar se acolheram todos ao castelo, e a dois barcos baleeiros que tinham, nos quais às vezes levavam mantimentos à cidade, quiseram-nos as galés tomar em terra que é abaixo do castelo, onde estavam em seco, e para os impedirem naquela hora foram muitos feridos, e não os puderam levar, e depois queimaram-nos os do lugar para não os cobrarem os castelhanos. Na vila havia assaz de gente que a pudesse defender, além de outros de fora que se acolheram a ela porque se vinham juntar ao Mestre e não o puderam fazer por causa da frota.
Eles tinham mantimentos de pão e vinho e carnes e doutras coisas para seis meses e mais, mas não havia outra água salvo a duma pequena cisterna, e sobre esta foi posta grande guarda, dando-se a cada uma pessoa por dia uma canada (1,5 litros) e não mais. E não embargando isto, os da vila saíam cá fora a esperar os castelhanos em certos passos, os quais andavam à forragem pelo termo e em Sesimbra, e matavam e feriam neles de tal forma que já não ousavam de ir senão muitos juntos, e também esperavam os que iam nos batéis a Arrentela e à Amora para roubar, de guisa que um dia mataram a mais de trinta, todos juntos, num lameiro, querendo-se eles recolher aos batéis e não conhecendo o local; e esta saída e tornada, que faziam quando queriam, era pela porta da barroca a que chamam Meijonfrio e que está contra o mar.
E sendo muitas vezes combatida e não lhe podendo fazer coisa de que grande nojo recebesse, mandou elRei que lhe fizessem uma cava por sob a terra, a qual começaram de longe, no arrabalde, e que ia direita a uma alta torre que está sobre a porta do castelo, para a pôr em contos (meter-lhe escoras) e com fogo a derribar, segundo se costuma, e os de dentro souberam disto parte. E onde os castelhanos cuidaram que iam fundo por sob a terra, foram sair com a boca da cava à cárcova (vala) da barbacã, que os de dentro já tinham cavado muito mais funda do que dantes era, e ali pelejaram uns com os outros e foi morto o mestre da cava, e feridos alguns duma parte e doutra, de modo que não se puderam dela mais aproveitar, a qual hoje em dia ainda lá está e pode-se ver.
ElRei houve grande azedume quando isto soube, e foi em pessoa à dita vila com parte das suas gentes e capitães para a poder combater à sua vontade, e mandou que lhe fizessem no campanário da igreja de Santiago, que é perto do dito castelo, um cadafalso forte de madeira donde ele visse toda a vila e como se a combatia.
E quando foi o dia do combate, pôs-se elRei naquele cadafalso e fez toda a sua gente combater o lugar todo à volta pelo lado da terra, porque da parte do mar não podia ser pela grande aspereza da altura do monte, e foi combatido com gentes de armas e de pé, e trons e bestaria, e fundas de manganela e mantas e outras artelharias de combate desde a hora de terça até depois do meio-dia. Os da vila, sentindo que elRei estava naquele cadafalso, se bem que dele não houvessem combate salvo de setas, resolveram atirar-lhe com um trom, e quando elRei, enfadado, se partia para comer, sendo na igreja, disparou o trom e deu no cadafalso (andaime), e matou dois homens e feriu três, e mandou então elRei afastar as gentes e não combateram mais por aquela vez; e foram mortos e feridos alguns castelhanos, e, dos portugueses, mortos um filho de João Lobato e Diego Domingues, filho de Domingos de Santarém, e outros foram feridos de pedras e de setas, porque dos trons que os inimigos queriam deitar lá para dentro não recebiam dano, visto que todos passavam e iam dar na água por azo da estreitura do lugar. Depois mandou elRei levar uma bombarda que deitava uma pedra que pesava mais de cinco quintais (1 quintal maior = 44 kg), e a primeira pedra que lançou foi muito baixa e não fez nenhum nojo, e ao segundo tiro, que não empeceu nada, quebrou de tal guisa que não se pôde mais aproveitar.
Vendo elRei que não se queriam dar por nenhuma guisa, prometeu de nunca preitear com eles, mas que todos andassem à espada (fossem passados a fio de espada), e deixou sobre o lugar Pero Sarmento e João Rodriguez de Castanheda com gentes em grande abundança, e mandou-lhes que os combatessem a cada dia, e ordenou de partir-se dali.
DAS COISAS QUE PASSAVAM OS DE ALMADA POR MINGUA DE ÁGUA.
Tornou-se elRei para o seu arraial, jurando e prometendo que nunca lhes daria vagar de serem combatidos até que por força fossem entrados sem nenhuma preitesia.
Onde sabei que dentro da vila havia uns quarenta cavalos, afora outras bestas de serventia, e quando a água lhes foi minguando, houveram conselho de não darem de beber às bestas, e foi tanta a sede nelas que ali onde mijavam os homens iam as bestas chuchar e comiam daquela terra molhada. Então ordenaram de os lançar fora do lugar para os não verem morrer, e de maneira a que os castelhanos não se prestassem deles, lançaram-nos todos pela barroca abaixo contra o mar, e cada um lançava o seu, e assim foram as bestas todas mortas. E por míngua da água que não tinham, amassavam o pão com vinho e nele igualmente coziam a carne e o pescado, e comiam o pão enquanto era quente, porque logo que era frio não o podia ninguém comer, e assim com outras viandas.
Nisto acabou a água da cisterna, e foi-lhes forçoso passar a beber outra muito de aborrecer, convém a saber: a que jazia na alcárcova e que chovera durante o Inverno, onde as mulheres, antes de serem cercados, lavavam as roupas infundiçadas e os trapos dos meninos, a qual era verde e muito suja, e jaziam ali bestas mortas e cães e gatos, que era nojosa coisa de ver, e de noite saíam homens de dentro, por cordas, a furtar daquela água. E quando os castelhanos souberam que dessa guisa a tomavam, trabalharam-se de a guardar, e muitas vezes aconteceu, quer de noite quer de dia, serem mortos e feridos por causa dela alguns duma parte e doutra; e esta água coziam-na (ferviam-na), e cozida a bebiam e amassavam com ela.
Depois que esta água minguou, trabalharam-se de haver da água do mar (do estuário do Tejo), e de tinas que tinham postas na ribeira para apanharem água doce, e desciam pela barroca por um caminho que fizeram para tomar daquela água, e ao primeiro dia trouxeram-na à sua vontade, e os castelhanos, como o souberam, puseram guarda nela. E os da vila, indo lá, acharam os castelhanos que a guardavam, e eles não eram mais que dezassete e, dos inimigos, eram bem um cento os que esperavam escondidos entre os penedos, e pelejando por causa dessa água foram mortos três portugueses e os restantes catorze ficaram muito mal feridos de setas e de dardos, e não puderam levar mais que dois odres meios de água, e os castelhanos quebraram-lhes as tinas.
Nisto morria já a gente com sede, tanto homens e mulheres como moços pequenos, e alguns dos que a ela se haviam acolhido lançavam-se fora da vila de noite e fugiam para conservar as suas vidas. E faziam do lugar toda a noite ao Mestre muitas almenaras de fogo com que lhe davam a entender o grande afincamento em que eram postos, porque doutro modo não lho podiam fazer saber, sendo assim cercados por mar e por terra.
O Mestre e os da cidade bem entendiam o grande trabalho em que eles eram postos, mas não lhes podiam prover de nenhum acorro, contudo o Mestre mandou certa noite uma barca ligeira com um trom que atirava muito, e pólvora (I), e bestas e outras armas para defesa, e aconteceu que foi aportar onde jaziam batéis de Castela e foi filhada com as armas, e presos todos os que a levavam. Então um cavaleiro gascão que dava pelo nome de mosse Ymam, muito homem de prol e bom homem de armas, tinha cativo Afonso Galo, que era Regedor da vila e fora aprisionado aquando daquela primeira escaramuça em que também foi preso Diego Lopes Pacheco. E este cavaleiro trouxe ali atado por uma corda Afonso Galo, até à beira do castelo, e disse aos de dentro que bem sabiam como aquela vila, e todo o reino de Portugal, era de direito delRei de Castela, e como muitos lugares do reino se lhe deram e davam, mas que eles com perfia (teimosia e deslealdade) não queriam fazer como faziam os outros, e que, ao invés, fizessem de guisa a não quererem ser traidores e dessem a vila a elRei de Castela, que lhes faria por isso muitas mercês. E que ele trazia diante deles aquele Afonso Galo que era Regedor da vila, e que fizessem o que ele lhes dizia senão que havia por força o dito Afonso Galo de morrer, e que não quisessem ver a sua morte nem a dos outros que eram presos, que elRei os mandava matar a todos.
Os da vila responderam que bem os podia elRei matar, se quisesse, mas que à vila não a dariam por coisa alguma que fosse, e que se arredasse dali com sua honra e se fosse com o seu prisioneiro. E insistindo ele nas suas razões para que todavia dessem a vila a elRei, fizeram prestes um trom pequeno e atiraram-lhe dentre as ameias, e foi tal a sua ventura que o tiro deu com ele morto por terra, e ficou Afonso Galo vivo e em pé, da qual morte elRei houve grande queixume, jurando que todos eles haviam de morrer à espada.
Nota (I): Bom, dado que, ademais dos tiros certeiros a curta distância no palanque do rei castelhano e na pessoazinha de monsieur Ymam, também agora aqui descobrimos a pólvora, parece-nos não haver dúvidas de que Fernão Lopes, quando fala de bombardas e trons, está-se mesmo a referir a armas de fogo e ao respectivo uso antes da batalha de Aljubarrota. Assim sendo, não tem nenhum fundamento no texto de Lopes a velha tese estapafúrdia de que os portugueses teriam visto pela primeira vez um canhão naquela batalha.
COMO OS DE ALMADA DERAM A VILA A ELREI DE CASTELA.
Sendo os de Almada em tão grande aperto por míngua da água que não podiam haver, acordaram em que mandassem recado ao Mestre, mas não tinham remédio nem conselho de como o pudessem mandar. De igual modo, o Mestre, que bem suspeitava das atribulações em que eram postos, desejava muito de saber em que ponto eram os seus feitos, mas não tinha jeito nem sabia maneira de como disso pudesse haver cumprida certidão. Então um homem dAlmada que viera na frota do Porto disse que lhe levaria a nado o recado, se o Mestre lho quisesse mandar.
Ao Mestre prouve disto muito, e disse-lhe por palavras as coisas que lhes havia de dizer, e mais lhes escreveu por carta o que entendeu para seu serviço, e uma noite chegou aquele homem à ribeira do monte e subiu por aquele escuso caminho da barroca que bem conhecia, onde chamam Meijonfrio, e falando aos do castelo que velavam, espantaram-se estes quando o ouviram e, conhecendo-o, abriram-lhe a porta, folgando muito com ele, e quando viram que viera a nado houveram-no para muito; e a conclusão do recado, por palavra e por escrito, era que lhe mandassem dizer em que ponto estavam, e que se aguentassem o mais que pudessem. E eles lhe fizeram saber quanto haviam passado até ali, e que não tinham água nenhuma nem sabiam que remédio fazer às suas vidas, e com este recado se tornou logo de noite aquele homem a nado.
Vistos pelo Mestre os seus padecimentos a que não se podia pôr remédio, ao cabo de três dias tornou aquele homem outra vez com recado em que o Mestre mandava dizer que lhe pesava muito do que tinham padecido, e, pois que assim era, que preiteassem o melhor que pudessem com elRei de Castela e lhe entregassem o lugar. Então decidiram mandar dois homens bons com recado a elRei de como queriam ser seus e lhe dar a vila; porém, primeiro que isso, nadou aquele homem o rio que é entre Lisboa e Almada seis vezes a levar e trazer respostas, e sempre de noite.
elRei sabia já por um homem que fora tomado, dos que fugiam do lugar, como não tinham água nenhuma, e que morreram muitas crianças e morriam mais a cada dia, e que haviam por força de se darem ou morrerem todos, e tinha vontade de não preitear com eles, e tal resposta deu aos que lá foram. E havendo já três dias que lá andavam, elRei não os queria ver e, querendo-se tornar, mandou-os chamar a Rainha, e com eles pediu a elRei, por mercê, que lhes perdoasse e preiteasse com eles.
E a elRei prouve disto, e foi a preitesia que elRei lhes segurava os corpos e haveres, e que cada um estivesse em sua casa e fosse senhor do seu sem lhes ser tomada nenhuma coisa, e assim lho cumpriu. E aos dois dias depois do trato, primeiro dia de Agosto, elRei e a rainha foram em galés a Almada, e foi-lhe entregue a vila, e as chaves dela, sendo ele recebido por senhor; mas padecendo a vila primeiro, como dissemos, tantos apertos e atribulações tais como nenhum outro lugar de Portugal padeceu pelo serviço do Mestre e por manter a sua voz.
ElRei e a Rainha comeram dentro da vila, e ele chamou os do lugar, dizendo-lhes que lhe fossem leais e que lhes daria muitas mercês, e alguns lhe pediram algumas coisas, e ele outorgou-lhas, e mandou que os tabeliães escrevessem em seu nome e se chamassem seus, e deixou por juízes os que o eram antes, e pôs na vila como regedor um cavaleiro que chamavam João Bravo, e para guarda dela as gentes e os capitães que antes a tinham cercada, e logo nesse dia se tornou para o seu arraial.
Escrito por Fernão Lopes
Foto(Almada Virtual)
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software livre.
terça-feira, 21 de maio de 2019
Cântico Negro – o mais belo poema de José Régio
José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista “Presença”, e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu.
Com o livro de estreia — “Poemas de Deus e do Diabo” (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.
Cântico Negro
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
domingo, 19 de maio de 2019
Moinho Maré Corroios
"606 Anos de Moagem"
O Moinho de Maré de Corroios é datado de 1403 e foi mandado edificar por D. Nuno Álvares Pereira. Está classificado de Imóvel de Interesse Público, em conjunto com outros moinhos de maré localizados no concelho do Seixal (Decreto n.º 29/84, de 25 de Junho).
O Moinho de Maré de Corroios é datado de 1403 e foi mandado edificar por D. Nuno Álvares Pereira. Está classificado de Imóvel de Interesse Público, em conjunto com outros moinhos de maré localizados no concelho do Seixal (Decreto n.º 29/84, de 25 de Junho).
Não sendo o Moinho mais antigo do Estuário do Tejo, pois já existiam na época alguns exemplares no Montijo e em Alcântara, foi contudo o primeiro a ser construído na região do Seixal. Ali eram produzidas farinhas mas também o descasque de arroz. Em meados do século XX era das quintas da região que provinham os mais diversificados cereais a farinar no Moinho. Chegam por terra mas muitas vezes pelas águas do esteiro, transportado por varinos que acostavam lateralmente ao edifício. Nos anos setenta, o Moinho de Maré de Corroios foi cada vez mais perdendo actividade.
A 2 de Novembro de 1979, a Câmara Municipal do Seixal deliberou adquirir o imóvel, tendo como objetivo a sua restauração e conservação. Em 1980, o moinho passaria a ser efectivamente património municipal, e o seu antigo moleiro seria contratado para estar ao serviço da autarquia e ajudar na recuperação do mesmo.
Em 25 de Junho de 1984 passa a ser classificado como imóvel de interesse público. A 6 de novembro de 1986, a após ser submetido a importantes obra de beneficiação, o moinho abre finalmente ao púbico como núcleo do Ecomuseu Municipal do Seixal.
Em 1986, após a realização de obras de recuperação do imóvel e da sua envolvente, o Moinho de Maré de Corroios abriu ao público como um dos núcleos museológicos que integram o Ecomuseu Municipal do Seixal. Desde então o moinho de Maré de Corroios não mais deixou de cumprir a sua função pedagógica e didáctica para um público em geral , mas para as escolas muito em particular, recebendo ao longo destes anos largas dezenas de milhares de visitantes.
Por motivo de conservação e requalificação, esteve novamente encerrado ao público tendo reaberto em Setembro de 2009, após um processo de qualificação com um investimento de mais de 2 milhões de euros. Este moinho convida-nos a descobrir um património raro, que se encontra em simbiose com o sapal de Corroios, espaço natural protegido, que constitui a mais importante zona húmida existente no concelho.
A visita a este espaço convida a uma reflexão acerca do valor histórico e técnico deste tipo de estruturas e das potencialidades energéticas oferecidas pelo mar
A visita a este espaço convida a uma reflexão acerca do valor histórico e técnico deste tipo de estruturas e das potencialidades energéticas oferecidas pelo mar
sábado, 18 de maio de 2019
“A minha alma tem pressa”
Belíssimo poema para reflectir
Nós todos sabemos que a vida muitas vezes não é longa o suficiente para viver tanto quanto gostaríamos, mas muitas vezes, além disso, não somos capazes de valorizar o que temos, o que vemos, desperdiçamos tempo com coisas que não merecem, não porque sejam irrelevantes, mas porque nosso coração não está nelas.
Mário de Andrade nos deixa um lindo poema (O valioso tempo dos maduros), que nos mostra uma bela apreciação da vida, que se conseguirmos nos inspirar nele, podemos sem dúvida dar muito mais valor a cada segundo com esse presente que chamamos vida
O Valioso tempo dos maduros:
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturas.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa.
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, quero caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!
(Mário de Andrade)
sexta-feira, 17 de maio de 2019
"Agora que o Sean Aprende a Ler" ( 2 )
Continuação de: A Lenda da Caparica - CAPA RICA Extractos de um conto inserido no livro " Agora que o Sean Aprende a Ler "
Texto e fotos cedidos gentilmente por J Maciel Costa, com os meus agradecimentos:
A Costa da Caparica, uma frente marítima de extenso areal, corre desde S. João até à Fonte da Telha.
No fim dos anos 70, chegando o verão, desaguava lá um mar de gente.
No fim dos anos 70, chegando o verão, desaguava lá um mar de gente.
Com o advento da ponte a unir as margens do Tejo, maralha da grande urbe lisboeta e das cercanias, tombava naquele espaço onde erguiam altares de adoração ao grande círculo irradiante, o sol, que lhes apequenava os olhos e escaldava a pele: alçavam o guarda da sombra, estendiam toalhas – de banho e de mesa, pois não raros por lá comiam – estufavam o peito para alisar o descaimento e prostravam-se em submissão para que aquele deus lhes fustigasse as costas.
Em alguns sítios, em enchendo a maré, o difícil era encontrar um lugarzinho onde coubesse, junta, toda a família... e mais a cesta da pinguinha e do pastel.
Partilhavam esse espaço os que mais dele precisavam: uma gente marinheira que ganhava a vida por meio da arte xávega, uma forma de pesca artesanal de cerco, em que o xalavar, a rede aparelhada em forma cónica, é puxada desde a praia por um longo cabo.
À chegada, as embarcações e rede eram puxadas até seco por animais – bois - e força braçal que se compunha não apenas pelos pescadores e sua família mas também por muitos mirantes ocasionais que alegremente se juntavam aos demais no esforço da recolha.
E esta era a fauna local.
À chegada, as embarcações e rede eram puxadas até seco por animais – bois - e força braçal que se compunha não apenas pelos pescadores e sua família mas também por muitos mirantes ocasionais que alegremente se juntavam aos demais no esforço da recolha.
E esta era a fauna local.
A estes misturavam-se temporariamente outras gentes, de outros locais e distantes proveniências, peregrinos que arribavam ao santuário da luz quente, falando línguas diferentes, de corpos despigmentados, quase translúcidos: turistas.
Annejet veio como um destes.
A vila, andava crescendo em restauração, hotelaria, comércio e residentes permanentes e outros mais abastados, sazonais. Havia portanto onde tomar albergue, adquirir lembranças, onde passear e apreciar a gastronomia rica em bivalves marinados como amêijoas à Bulhão Pato ou as cadelinhas com alho.
Annejet porém, mais a mãe que queria escurecer, e mais a tia que tentava ganhar cor, ganhavam o dia na praia. Isso das comezainas era mais para o padrasto que sofrendo de um aleijão numa perna, preferia andar com os amigos a visitar todas as mesas, evitando, também assim, abaixar a perna da calça.
Jovem, bela e diferente, logo logo conheceu uma chusma de adolescentes da vasta comunidade estudantil que de todo o concelho ali ia a banhos e namoros.
A tia, que curiosamente até era mais nova, arisca e desembrulhada de conceitos foi a primeira a deixar-se conhecer e ser conversada pelos arremedos de macho latino que vendo- as, abotoaram-se com o espaço que à volta delas pudesse haver.
Uma bola desencaminhada, uma areia que respinga do pé apressado: “Sorry” e um risinho palerma fizeram a aproximação.
Em inglês se entendiam. Elas, fluente e desembaraçadas, eles resumidos ao presente simples… quando acertavam… porque muitas vezes aquilo nem tempo verbal conhecia. Em Portugal o ensino da língua francesa era, por essa altura, oficialmente predominante e academicamente nuclear.
Uma bola desencaminhada, uma areia que respinga do pé apressado: “Sorry” e um risinho palerma fizeram a aproximação.
Em inglês se entendiam. Elas, fluente e desembaraçadas, eles resumidos ao presente simples… quando acertavam… porque muitas vezes aquilo nem tempo verbal conhecia. Em Portugal o ensino da língua francesa era, por essa altura, oficialmente predominante e academicamente nuclear.
Certo dia, já ela por ali andava há duas semanas, viu o grupo agitar-se, levantar-se e caminhar alvoroçado até às escadas de pedra que conduziam do largo passadiço à areia. Pareciam felizes e recompensados. Alguns braços despertos agitavam o ar em excessivo aceno.
Quem por lá descia sorria a gosto. Sem suspender o movimento, deixou-se prender e envolver pelos que aí vinham.
Choveram cumprimentos: longos abraços da rapaziada, apertados beijinhos da raparigada.
Choveram cumprimentos: longos abraços da rapaziada, apertados beijinhos da raparigada.
- Caramba! Andaste perdido ou quê? Não tinhas ficado de regressar no dia 15?
- E voltei! Só que depois fui com os pais uma semana a Sesimbra. Venho enfastiado de espadarte. – Foi dizendo - Mas o Ernesto sabia disso, telefonou-me. E onde é que ele anda? Não o vejo.
- Arranjou um trabalho para as férias. O artolas… depois de um ano de livros…
E foram conversando, perguntando e respondendo, dizendo, esclarecendo e contando, umas por cima da voz dos outros.
Em tom tranquilo e paciente o recém-chegado a todos dava uma palavra, com todos anuía, a ninguém contradizia. E esta era a primeira cor do seu carácter: …
A sua aparência e atitude era distinta dos demais. Sem nisso empenhar qualquer esforço parecia ter sobre os outros uma qualquer influência benigna. Junto a ele nascia uma certa calmaria, amansava a fúria de viver depressa, fútil, inconsciente e descompassada. Era como se um maestro erguesse a batuta e todo o executante aquietasse e suspendesse o ensaio. Aguardava-se.
Aos poucos aquietaram-se e conduziram-no até ao ponto de onde partiram. Perto dela.
Pedro, um amigo miúdo de corpo e olhos, miudinho na maneira ser mas de enorme afeição e amizade para com os outros, chegou-se a ele e tentando rodear-lhe os ombros, com rosto sério e fala entaramelada, disse:
_ Aquela, - apontava para Annejet – é minha namorada, é holandesa – como se isso fosse fazer diferença – e por favor não lhe deites o teu feitiço.
Olhou na direcção indicada e notou-lhe a beleza.
“ Hum… uma estrela em pleno dia ?”
“ É bela: admiro-a”
“ Hum… uma estrela em pleno dia ?”
“ É bela: admiro-a”
Há ali um fogo que apenas ela aprisiona,
Um perfume de cristal em si vertido.
Uma chama confinada que, se solta, apaixona.
O altar pagão onde o crente ajoelha vencido.
Um perfume de cristal em si vertido.
Uma chama confinada que, se solta, apaixona.
O altar pagão onde o crente ajoelha vencido.
- Que é isso de feitiço, menino? Olha que não te entendo.
- Tu sabes… agradas a todas. Já nem sei o que digo, desculpa.
- Ai, ai. – Repreendeu amavelmente – Tu e as tuas paixonetas… Guarda os receios num saco e com eles a tua ninfa. Isto é verão, tempo de abracinhos descomprometidos. Chegando Setembro… uma dorzinha no peito, uma noite mal dormida e pronto, ficas pronto para outra.
Sai o pássaro da clareira do bosque procurando uma fonte escondida, sabendo que caem mais depressa as folhas multicoloridas que as de verde, apenas, vestidas.
Estava vestido a férias: usava sobre o corpo uma singular túnica de linho branco onde no peito se percebia uma pequena marca azul; bermudas de ganga, igualmente brancas, descobriam-lhe as pernas do joelho para baixo; como calçado umas socas de madeira e borracha de rastro, que se mantinham nos pés por meio duma ponte de couro pintada de branco. No pescoço amarrava um lenço azul de algodão e, trazia alçado às costas uma mochila pequena, impermeável, do tipo militar que pedira para tingir de azul.
Desta retirou uma toalha e recolheu ao alforge o que ia despindo.
Desta retirou uma toalha e recolheu ao alforge o que ia despindo.
Rosto simétrico, um tanto bronzeado, encimado por longo cabelo que lhe caía até aos ombros, com leve brilho metálico que lhe causava o sol do verão, o iodo e sal marinho que as ondas da praia lhe emprestaram e impregnavam a pele.
Não havia sido, em verdade, a água do mar uma das primeiras terapias usadas pela humanidade tanto para fins estéticos, como para fonte de bem estar e saúde?
O corpo, despido de preconceitos e agora recolhido apenas num calção de banho, apresentava a mesma tonalidade.
Não havia sido, em verdade, a água do mar uma das primeiras terapias usadas pela humanidade tanto para fins estéticos, como para fonte de bem estar e saúde?
O corpo, despido de preconceitos e agora recolhido apenas num calção de banho, apresentava a mesma tonalidade.
A tia de Annejet, despudorada, aplicava na sobrinha rápidas e notórias cotoveladas. Queria com isso significar que apreciava o que via.
Annejet, doendo-se e também incomodada pelos movimentos reveladores, pespegou na tia um olhar suplicante e uma palavra nativa:
Annejet, doendo-se e também incomodada pelos movimentos reveladores, pespegou na tia um olhar suplicante e uma palavra nativa:
- Wat? – O quê?
E a tia: - Het beste lanschap van zee kust!
A jovem sorriu-se disfarçadamente pela alegoria, a maneira indirecta de expor a ideia sob a aparência de outra.
Mesmo não concordando na forma acordava no conteúdo.
Mesmo não concordando na forma acordava no conteúdo.
Até porque, parecia-lhe, era uma imagem já antes vista ou por si passada. Não sabia dizer quando, mas sentia no seu mais profundo ser que algo assim já acontecera. Sentiu um arrepio, mas não por medo.
Um vulto atrasado, o reflexo impregnado dum momento anteriormente vivido.
Sacudiu o pensamento e erguendo-se foi ao banho salgado.
Pedro, que estava à espreita, foi logo atrás. Ela olhou-o e seguiu em frente, indiferente.
Nem uma palavra cúmplice, um gesto ou atitude partilhada. Somente ela ia, e ele por perto, guiado, mesmerizado por inaudíveis notas de uma flauta invisível.
Pedro, que estava à espreita, foi logo atrás. Ela olhou-o e seguiu em frente, indiferente.
Nem uma palavra cúmplice, um gesto ou atitude partilhada. Somente ela ia, e ele por perto, guiado, mesmerizado por inaudíveis notas de uma flauta invisível.
“ Hum… essa da namorada… é mais um desejo, não uma coisa acontecida ”.
Não tardou muito e já todo o grupo se comprazia na água amenizadora que lhes esfriava os corpos quentes do brasido.
Saltos, mergulhos, espadanar e chapinhos componham os folguedos e divertimento da turma adolescente. Alguns quiseram puxar pelo corpo e desataram em vigorosas braçadas para além de pé. Ele foi um e ela também lá foi.
Saltos, mergulhos, espadanar e chapinhos componham os folguedos e divertimento da turma adolescente. Alguns quiseram puxar pelo corpo e desataram em vigorosas braçadas para além de pé. Ele foi um e ela também lá foi.
Perto um do outro, fazendo movimentos circulares de braços e pernas para conseguir a flutuação, respiravam com brevidade e recuperavam o fôlego. Então encararam-se pela primeira vez.
- Hi! – A jeito de cumprimento.
- Hi, I’m Annejet.
“ Jesus, que doçura de voz! Que colmeia premiada originara este mel? “
- Excellent crawl swimming of yours – Disse, sem saber o que dizer.
- And yet you´ve beaten me. – Elogiou-o.
- Porque eu tinha uma forte motivação: julguei estar a nadar junto a uma sereia. – Ele pensava assim dar-lhe a melhor vénia.
Entretanto chegavam a tia e o Pedro causando fim ao têt-à-têt.
Observando as consequências, analisando os dados, previdentemente para travar ou pelo menos diminuir a velocidade dos danos que causava o elevar do nível das águas do mar, a erosão costeira que desfazia a falésia, absorvia as dunas e tragava areias, fez-se construir frente à zona habitacional robustos esporões de rocha que deram origem a pequenas porções de praia confinadas aos limites das obras.
Essas praias, em boa maioria, tomaram o nome de bares e restaurantes que lhes davam apoio de retaguarda.
As praias do Tarquíno, o Dragão Vermelho, Delícias da Praia eram algumas delas.
Essas praias, em boa maioria, tomaram o nome de bares e restaurantes que lhes davam apoio de retaguarda.
As praias do Tarquíno, o Dragão Vermelho, Delícias da Praia eram algumas delas.
Numa dessas a que o jovial grupo acorria, o Laurentino muitas vezes ajudava os pais atrás do balcão, ou então servia petiscos e cerveja fresca na esplanada em horas de maior afluxo de clientes.
O Laurentino era entre os amigos aquele que juntamente com o Ernesto, mais privava fora da escola com o recém-chegado. Foi com ele que ela foi ter.
Tinha passado o resto do dia a procurar saber do novo banhista. Tivera, não obstante a persistência, pouco sucesso.
O Laurentino era entre os amigos aquele que juntamente com o Ernesto, mais privava fora da escola com o recém-chegado. Foi com ele que ela foi ter.
Tinha passado o resto do dia a procurar saber do novo banhista. Tivera, não obstante a persistência, pouco sucesso.
Que se tinha matriculado na escola havia apenas 3 anos e ninguém conseguia dizer de onde vinha; que era aluno de honra e feitos atléticos pese embora a descontração nos estudos; capitão das equipas, vencedor de provas individuais; que lia bastante fora das matérias de aula; ai jesus das meninas e notado pelos docentes, respeitado por funcionários e colegas e parceiro recorrente em assuntos da direcção. Que do seu lado privado não sabiam.
- Pergunta ao Laurentino. – Aconselharam.
- Bem… - e coçava a cara o Laurentino – que sei eu mais que aquilo que te disseram? Pouco, acho eu.
Que era duma família de origem antiga, cheia de tradições. Que, por não ser o primogénito tivera uma de duas escolhas: o seminário aos 10 anos, ou a academia militar aos dezoito. Que tivera preceptor do clero e que isso se notava. Que em boa verdade não sabia de onde vinha, apenas sabia que ia muitas vezes aos Açores e ao Minho; que ainda agora de lá chegava.
- No more. – Tentou concluir num inglês truncado.
- Any girlfriend? – Atreveu-se acabrunhada.
Nada que isso se pudesse chamar. Uma ou outra mais chegada, fugaz.
“ Se agradar a uma, vou magoar muitas mais” usava dizer.
Abominava magoar alguém sabendo que o fazia.
“ Se agradar a uma, vou magoar muitas mais” usava dizer.
Abominava magoar alguém sabendo que o fazia.
Estava como que aturdida. A sua sempre desobrigada mente, a sua vontade invariavelmente por si comandada via-se agora inexplicavelmente comprometida, assoberbada em entender, saber, com quem lhe parecia querer cruzar-se a vida.
E quanto mais procurava menos encontrava.
E quanto mais procurava menos encontrava.
Na manhã seguinte, já de longe tentava penetrar com o olhar por entre a muita gente que se encontrava no areal, no seu lugarzinho do costume, a ver se via quem queria. Mas era cedo.
E para mais ele, que chegava nem sabia donde. Viria dos lados de Almada.
E para mais ele, que chegava nem sabia donde. Viria dos lados de Almada.
Pela tarde, depois de uma ligeira refeição, composta por uma salada de vegetais e fruta e boa quantidade de água, tomada sem sair da praia, pediu-lhe:
- Passas-me o protector solar nas costas?
A sua pele era delicada e alva; um descuido e sobrevinha um escaldão.
Claro que sim, fazia-o “delighted”.
Sentiu sob as polpas dos dedos dele o leve tremor que a sacudia.
E nela, das suas fibras, tange um arremedo de sextilha:
A viagem das tuas mãos em meu corpo desliza.
Sinto-as perfeitamente.
Percebo que os teus toques,
em ousada pesquisa,
cinzelam-me na tua mente
sem enganos, sem retoques.
Sinto-as perfeitamente.
Percebo que os teus toques,
em ousada pesquisa,
cinzelam-me na tua mente
sem enganos, sem retoques.
E uma paixão assim, quando chega não avisa.
Não refeita da devassa que sentiu que ele fizera ao seu ser desagasalhado, balbuciou: - Do you need some?
E apresentava-lhe o creme.
E apresentava-lhe o creme.
- Niet, dank.
- Spreken nederlands? Surpresa!
- Não. Apenas algumas palavras que devo ter aprendido em tempos. Já nem sei quando nem onde. Tenho a vaga lembrança que precedeu uma crucificação voluntária em que levei a cruz e os pregos.
Não entendeu. Um enigma lançado pela pouco visível pessoa.
Confusa: - Ah! E o creme, não queres mesmo?
- Não preciso, incumbo dessa protecção os meus pigmentos.
Depois… houve embaraço. Não sabiam como seguir a conversa e então acariciaram-se, sem perceber, com os olhos.
E constituiu isso o melhor momento, até então.
Desde então passaram a criar ocasiões para estarem sós. Falavam disto e daquilo um nada e nada daquilo que acima de tudo queriam.
Caminhavam juntos, no sítio onde a onda desmaia; os corpos quase se tocando, andando perto… quase juntos, sabendo que geminadas andavam, entrançadas, as suas almas.
Caminhavam juntos, no sítio onde a onda desmaia; os corpos quase se tocando, andando perto… quase juntos, sabendo que geminadas andavam, entrançadas, as suas almas.
Uma tarde, Annejet estendeu a mão esquerda para que lhe notasse as pontas dos dedos. Tinha envernizado a unha do polegar e a unha do dedo mindinho de rosa claro.
- Do you know what does this mean? – Perguntou.
- Nope. – Disse brando e suspeitoso.
Branda e descarada, ensinou: - It means I love someone but he didn´t realize…yet.
- Should it not be too odd on a man’s finger and I could wear something like that as well. – Replicou surdamente enquanto escapulia.
- Do you know what does this mean? – Perguntou.
- Nope. – Disse brando e suspeitoso.
Branda e descarada, ensinou: - It means I love someone but he didn´t realize…yet.
- Should it not be too odd on a man’s finger and I could wear something like that as well. – Replicou surdamente enquanto escapulia.
Não que quisesse fugir ao tema, só porque havia silêncios que falavam mais alto que a voz.
No verão há sempre um dia em que chove. Dá-nos um banho diferente.
De repente, uma nuvem grávida aparece e, indecente, derrama as águas sobre a gente.
E choveu! Num fim de tarde.
E todas e todos correram ao refúgio do guarda-sol.
Mas esse não é feito para isso e a água trespassa o pano. Nenhum escapou ao banho e mais do que isso, houve roupas e pertences encharcados. Acabou-se o dia.
De repente, uma nuvem grávida aparece e, indecente, derrama as águas sobre a gente.
E choveu! Num fim de tarde.
E todas e todos correram ao refúgio do guarda-sol.
Mas esse não é feito para isso e a água trespassa o pano. Nenhum escapou ao banho e mais do que isso, houve roupas e pertences encharcados. Acabou-se o dia.
Annejet pensava como iria resolver a questão de entrar no hall do hotel com o cabelo assim molhado, de corpo desnudado. Que embaraço.
Nada que o seu paladino não a adivinhasse, não entendesse.
Resolveu. Abriu a mochila impermeável e de lá tirou a solução.
Entregou-lhe a túnica branca marcada por minúscula letra azul vibrante.
- Leva-a como agasalho, usa-a e guarda-a. Tem nela o branco dos anjos e a ponta azul do paraíso.
A partir de agora é tua. Condizem uma com a outra.
A partir de agora é tua. Condizem uma com a outra.
Ela, contente, mas previdente : - Então e tu? Como vais para casa? Não é verdade que tens de viajar até lá chegar?
- Hey! Tanta pergunta. Tanta cautela comigo.
E tranquilizou: - Vou ali ao Laurentino e ele há-de emprestar-me uma camisa. Como passa aqui o verão, tem de certeza muito para vestir.
- Hey! Tanta pergunta. Tanta cautela comigo.
E tranquilizou: - Vou ali ao Laurentino e ele há-de emprestar-me uma camisa. Como passa aqui o verão, tem de certeza muito para vestir.
No último dia em Portugal, na véspera de partir o coração, de quebrar o encantamento, ele pediu-lhe a morada e ofereceu um anel.
Coisa simples que ele urdiu com missangas. Era branco, estreito em baixo e ia alargando até formar um quadrado onde a azul bordara a letra M.
- M de quê? _ quis saber a ofertada.
- Nada de interessante; uma inicial dum nome da minha família.
Coisa simples que ele urdiu com missangas. Era branco, estreito em baixo e ia alargando até formar um quadrado onde a azul bordara a letra M.
- M de quê? _ quis saber a ofertada.
- Nada de interessante; uma inicial dum nome da minha família.
Nessa noite, pela primeira e única vez a mãe deixou-a sair a passear.
Mas não iam sós. Uma ceifeira da dor, mondadeira do desgosto por eles rondava, teimava em usar a gadanha naquela ceara de amor.
Mas não iam sós. Uma ceifeira da dor, mondadeira do desgosto por eles rondava, teimava em usar a gadanha naquela ceara de amor.
Que tememos nós, se estamos sós,
à mingua da beira do outro?
Onde vamos nós, um dia após
da ida, partida dessoutro
cuja barca não espera,
pois há muito intuía
que a vida curta desespera
por um amor de um dia.
à mingua da beira do outro?
Onde vamos nós, um dia após
da ida, partida dessoutro
cuja barca não espera,
pois há muito intuía
que a vida curta desespera
por um amor de um dia.
Os seus rostos aprisionavam-se cada um refém do outro; mãos dadas, engalfinhadas, temendo a chegada da hora.
Mas o tempo escapava e antes que fossem embora…
- Espera, – pediu ela – vem até aqui que quero mostrar-te um quadro.
A areia molhada recebia com precisão qualquer leve pressão. Ela pediu-lhe que pressionasse o chão e lá deixasse a marca dos seus pés, ligeiramente afastados.
Causa e efeito. Deu um pulo e estava feito.
Então ela, suavemente imprimiu os dela entre os dele. Afastou-se um passo e envolveu o baixo relevo num coração desenhado a dedo.
E Corou.
E ele percebeu…
Percebeu que era frágil. Reconhecia as fraquezas.
Tinha porém este temperamento; marcas que lhe gravaram na alma em tempos e que o tempo aprofundou: era, para alguns um farol, a carta de navegação; se ousar sair do itinerário, inocentes se perderão.
Então: manteve a vida a prumo.
A areia molhada recebia com precisão qualquer leve pressão. Ela pediu-lhe que pressionasse o chão e lá deixasse a marca dos seus pés, ligeiramente afastados.
Causa e efeito. Deu um pulo e estava feito.
Então ela, suavemente imprimiu os dela entre os dele. Afastou-se um passo e envolveu o baixo relevo num coração desenhado a dedo.
E Corou.
E ele percebeu…
Percebeu que era frágil. Reconhecia as fraquezas.
Tinha porém este temperamento; marcas que lhe gravaram na alma em tempos e que o tempo aprofundou: era, para alguns um farol, a carta de navegação; se ousar sair do itinerário, inocentes se perderão.
Então: manteve a vida a prumo.
E dando-lhe antes um aceno, um doído olhar final àquela confissão, foi-se embora.
A viagem de regresso à Holanda, longa de dois dias em carro, foi um martírio. Nada conseguia comer de apertado que tinha o estômago, nada a distraía de pesada que tinha a mente. A posição contínua no carro, nem a incomodava de dorido que estava o espírito.
Vestiu nos dias assim passados a preciosa branca túnica ornada da pequena letra ocultada de cor azul.
Entre as mãos enclavinhadas, uma folha de papel com um endereço anotado. Era o fio que lhe prendia o ser, a amarração a um cais sonhado.
Na cabeça surgiam em burburinho as letras palavras que lhe escreveria, o que dizer, para o fazer saber, em quantas saudosas milhas o seu amor crescia.
Num dedo o elo dele.
Vestiu nos dias assim passados a preciosa branca túnica ornada da pequena letra ocultada de cor azul.
Entre as mãos enclavinhadas, uma folha de papel com um endereço anotado. Era o fio que lhe prendia o ser, a amarração a um cais sonhado.
Na cabeça surgiam em burburinho as letras palavras que lhe escreveria, o que dizer, para o fazer saber, em quantas saudosas milhas o seu amor crescia.
Num dedo o elo dele.
Ele nem foi à praia por uns dias. Não conseguiu.
Quando voltou viram-no macambúzio. Sorumbático vagueou sozinho por pontos previamente decorados.
- Viver também pode ser triste. – Confidenciou aos amigos.
Sarcástico Pedro dizia: - Deixa, é um amor de verão… Quando chegar Setembro.. um dorzinha no peito, uma noite mal dormida e pronto, ficas pronto.
O malandro julgava tirar a desforra e enganava-se.
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Uma semana depois, Annejet recebeu devolvida a carta que lhe tinha enviado. No rosto do sobrescrito, a vermelho estampado, trazia escrito: “ Desconhecido nesta morada “
O mundo fechou-se e ela nem à porta chegou.
Passados 6 anos, já adulta, Annejet voltou a Portugal. Inconformada, foi onde poderia obter dele notícias.
Ao restaurante de praia dos pais do Laurentino.
Ao restaurante de praia dos pais do Laurentino.
Que alegria, que satisfação; bem se recordavam dela menina, sempre educada sempre acompanhada por ele e pela tia.
O Laurentino não estava, fizera-se marinheiro e andava no mar do Canadá. Era agora um oficial da marinha mercante. Estava casado e já lhes dera um neto.
Dele nada sabiam, apenas…
Tinham com eles guardada uma carta que ele lhes deixou para que a entregassem a ela. Tinha-lhes dita, na altura, que ela viria um dia.
“Se me lês é porque tudo está bem, que se acertam os ponteiros.
Navegaste alegremente até à baía do meu peito, julgando inocente aí encontrar abrigo.
Porém as águas do meu porto são profundas e escondem perigos, são onde começam os abismos.
Na enseada que aportaste apanhou-te a tormenta, a tempestade imperfeita; o vento arrasou-te as velas quando querias calmaria; lamento.
Se desejas um culpado, culpa o dia em que nasci. Mas condescende por um instante, repara benevolente que nem nisso tomei parte.
Mas tudo isto não é mais que um momento, é um dente lascado da engrenagem aveludada que um dia nos governará a vida.
Minha mãe para me ajudar, deu-me a ler o livro do tempo e foi aí que encontrei como encontrar a nossa hora. Descobri o hiato temporal onde por nós passa o futuro. Já sei o que fazer, como ludibriar o destino, na parte que alguém, descontente, me traçou no passado.
Lembras o dia que falei numa crucificação, e da cruz que levei? Pois desta vez enganei-os, não levo comigo os pregos.
É por esta razão que te digo, com convicção asseguro:
Um dia eu vou-te buscar.”
Navegaste alegremente até à baía do meu peito, julgando inocente aí encontrar abrigo.
Porém as águas do meu porto são profundas e escondem perigos, são onde começam os abismos.
Na enseada que aportaste apanhou-te a tormenta, a tempestade imperfeita; o vento arrasou-te as velas quando querias calmaria; lamento.
Se desejas um culpado, culpa o dia em que nasci. Mas condescende por um instante, repara benevolente que nem nisso tomei parte.
Mas tudo isto não é mais que um momento, é um dente lascado da engrenagem aveludada que um dia nos governará a vida.
Minha mãe para me ajudar, deu-me a ler o livro do tempo e foi aí que encontrei como encontrar a nossa hora. Descobri o hiato temporal onde por nós passa o futuro. Já sei o que fazer, como ludibriar o destino, na parte que alguém, descontente, me traçou no passado.
Lembras o dia que falei numa crucificação, e da cruz que levei? Pois desta vez enganei-os, não levo comigo os pregos.
É por esta razão que te digo, com convicção asseguro:
Um dia eu vou-te buscar.”
Corria outro dia quando acordou. Estremunhada lançou pernas e braços fora das cobertas e olhou o outro extremo da cama: Ali estava, não fora sonho. Ainda ontem nem imaginara.
Vinha dele um manto de ternura, a imagem da paixão e dizia…
***
Vinha dele um manto de ternura, a imagem da paixão e dizia…
***
Annejet em holandês significa adorável e graciosa e era nome bem apropriado para ela. Dócil e amável de índole, agradável, com graça de figura. Já assim o era aos 17 anos de idade e ainda, decorridos 20 anos, assim permanecia, só que mais maturada, mais intensa na forma e no carácter.
Era como uma rosa branca que floresce, desabrocha e cresce mas, mesmo que polinize, é sempre branca, é sempre flor.
Era como uma rosa branca que floresce, desabrocha e cresce mas, mesmo que polinize, é sempre branca, é sempre flor.
Nesse dia tinha caminhado até Place de l’Albertine, de onde, num salto a pé coxinho estava no parque Mont des Arts. Não mais longe tinha a Biblioteca Real onde podia facilmente recolher em literatura o que fosse preciso.
Gostava de ali ir quando necessitava de mentalmente arranjar espaço para rever o material que havia de enviar para a sede do seu ‘krantenpapier’.
A sua vida profissional de corresponde em Bruxelas deixava-lhe tempo suficiente para respirar a vida, para rever os passos. Também... tirando o editor que por vezes lhe azucrinava os ouvidos e lhe enchia a caixa de correio electrónico, não tinha, a bem dizer, a quem mais prestar contas.
Gostava de ali ir quando necessitava de mentalmente arranjar espaço para rever o material que havia de enviar para a sede do seu ‘krantenpapier’.
A sua vida profissional de corresponde em Bruxelas deixava-lhe tempo suficiente para respirar a vida, para rever os passos. Também... tirando o editor que por vezes lhe azucrinava os ouvidos e lhe enchia a caixa de correio electrónico, não tinha, a bem dizer, a quem mais prestar contas.
Escolheu um dos bancos de madeira que se escondia num recesso dos arbustos em frente a folhosos plátanos cujos troncos pintam até meio de um produto fito acético colorindo-os de branco.
Daí o seu olhar caía por uma ou outra vez em quem caminhava no passadiço de lajes passando frente ao ‘Blue Box’, de singular aspecto: um paralelepípedo vidrado.
Daí o seu olhar caía por uma ou outra vez em quem caminhava no passadiço de lajes passando frente ao ‘Blue Box’, de singular aspecto: um paralelepípedo vidrado.
O Monte das Artes pela sua central e elevada posição, quer pelos diversos edifícios e monumentos circundantes quer por todos os outros que do alto se pode avistar é um ponto de grande interesse turístico. Num único quarteirão junta arte e cultura em ambiente de charme e relaxe.
Era sempre uma distracção e exercício de dedução procurar entender de onde provinha, que nacionalidade teria este ou aquele visitante.
Era sempre uma distracção e exercício de dedução procurar entender de onde provinha, que nacionalidade teria este ou aquele visitante.
Nesse dia, num desses olhares de soslaio notou que alguém parara e mantinha sobre si atenção. Não era insultuoso ou algo que se parecesse; olhava educada e amavelmente. Um leve sorriso parecia ir surgir a cada momento.
- Pardonnez-moi,- desculpava-se – mais je la connais!
Semi-espantada, meio admirada, arrastadamente disse:
- Oui…nous nous connaissons, je crois!
- Oui, je dis! Conhecemo-nos. Estou aqui por ti.
Aquele modo breve e claro, determinado, confiante de afirmar… aquele antigo olhar naquele inalterado rosto…
Claro!
- It´s you, it´s you,- disse ela em alegre crescendo – blow me!
- Pardonnez-moi,- desculpava-se – mais je la connais!
Semi-espantada, meio admirada, arrastadamente disse:
- Oui…nous nous connaissons, je crois!
- Oui, je dis! Conhecemo-nos. Estou aqui por ti.
Aquele modo breve e claro, determinado, confiante de afirmar… aquele antigo olhar naquele inalterado rosto…
Claro!
- It´s you, it´s you,- disse ela em alegre crescendo – blow me!
E como a celebrar a epifania, nesse altura desatou a repicar o carrilhão do Relógio de Sol de Kunstberg que ali mesmo ao lado lustrava uma fachada. As suas figuras, entravam e saiam de cada nicho a acompanhar o toque das horas e pareciam rejubilar.
*
*
*
Duas décadas antes, a mãe de Annejet, viúva, casara em segundas núpcias com um arquitecto português que havia demandado as terras baixas procurando melhores proveitos e trabalho sustentado.
O emigrante, orgulhoso da sua terra, do seu sol, bonomia das gentes e da boa e farta mesa, tratou de aí levar a férias a sua recente família.
E Annejet conheceu um pedaço de Portugal.
E Annejet viveu um pedaço.
O emigrante, orgulhoso da sua terra, do seu sol, bonomia das gentes e da boa e farta mesa, tratou de aí levar a férias a sua recente família.
E Annejet conheceu um pedaço de Portugal.
E Annejet viveu um pedaço.
Todas as ruas têm esquinas. Por vezes nelas um encontro encarrega-se do reencontro em que um coração gentil pula de palpitações, refaz-se e amplia ecos de recordações.
Quando se escoou o alarido que o relógio de sol fizera, ela de olhos luzidos, escarlate de emoção, apenas disse:
- Porque vieste ?
- Já antes to disse. Já o escrevi.
E em tom triunfal…
- Resgatei-me, rasguei os manuscritos. Desci do cruzeiro.
- Resgatei-me, rasguei os manuscritos. Desci do cruzeiro.
- Venho buscar-te!
Corria outro dia quando acordou. Estremunhada lançou pernas e braços fora das cobertas e olhou o outro extremo da cama.
Ali estava, não fora sonho. Ainda ontem nem imaginara.
Estava ali na sua frente o motivo da presente falta de dor.
Ali estava, não fora sonho. Ainda ontem nem imaginara.
Estava ali na sua frente o motivo da presente falta de dor.
Vinha dele um manto de ternura, a imagem de outrora, o preencher do vazio em que antes sucumbira e que agora calado lhe dizia: “ Sou eu mesmo meu amor”.
- Quero guardar em mim o infinito deste instante, quero que não fique em ti a nódoa de um pior momento. Sabes, quando à poucos anos nos vimos, não nos vimos, revimos; quando julguei que te encontrei estava sim a reencontrar, foi a altura em que o tempo reuniu as nossas vidas.
Ressoa o passado que em si habita
como dança em chão de sobrado,
ou corda tensa dum acorde inacabado,
e renovado, de si escorre e não hesita.
como dança em chão de sobrado,
ou corda tensa dum acorde inacabado,
e renovado, de si escorre e não hesita.
Julgando, por fim entender…
Procurou a túnica de linho que ele lhe dera e não a viu. No seu lugar estava uma capa que, ainda que se percebesse ser na origem de grande qualidade, estava desfibrada e gasta.
Num relance intemporal surgiu-lhe uma visão dum passado inacabado. Algo que alguém, lá, fosse onde fosse, lhe pedia para resolver.
Por impulso incompreensível correu a abrir a sua caixinha de joias:
Na sua relíquia de missangas, o frágil anel que ele lhe oferecera, chispava agora imponente uma águia dourada de asas estendidas.
Na sua relíquia de missangas, o frágil anel que ele lhe oferecera, chispava agora imponente uma águia dourada de asas estendidas.
*
A girândola da vida repetia o trajecto, pois que, circulando sobre si mesma fez o regresso ao princípio.
- Dás-me uma filha?
- Dou-te quantas quiseres, Philipe.
- Dou-te quantas quiseres, Philipe.
FIM
Almada-17-05-2019
Almada-17-05-2019
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