quinta-feira, 16 de maio de 2019

"Agora que o Sean Aprende a Ler" ( 1 )

Conto:
Texto e fotos cedidos gentilmente por J Maciel Costa, com os meus agradecimentos:

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Al-ma'adan ( a mina ), Almada havia sido tomada pelo rei português com auxílio de cruzados do norte da Europa. O seu castelo era ponto de elevado interesse estratégico.
Daí, em seu redor e por toda a costa limítrofe instalaram-se novos povoadores, alguns mesmo membros e familiares dos que de longe ali foram a ajudar na derrota e saída forçada do “infiel sarraceno “.
Cruzados eram elementos do movimento militar de inspiração cristã, que à época era chamado de peregrinação, criado na sua génese para partirem à conquista de Jerusalém que estava sob controle de turcos muçulmanos, mas também acorriam onde reis cristãos combatiam, expulsavam e integravam o processo de reconstrução do antigo Império romano.
Num impulso civilizador e com esse fim, criaram-se ricas e poderosas Ordens.
A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão conhecida como Ordem dos Templários, assim chamada em decurso do Monte do Templo, onde existira o Templo de Salomão em Jerusalém, foi uma delas, sob o lema de castidade, pobreza e obediência.
A sua importância e poder chegou a tal ponto que o papa emitiu uma bula declarando que a não ser ao próprio papa os templários não deviam obediência a qualquer poder, fosse ele secular ou eclesiástico.
Jacques de Vitry traça os Templários como "leões de guerra e cordeiros no lar; rudes cavaleiros no campo de batalha, monges piedosos na capela; temidos pelos inimigos de Cristo, a suavidade para com Seus amigos".
Ora, Philipe da R.M., não sendo um templário acolitado ou professo, nem aos seus dogmas esotéricos e místicas atido ou comprometido, partilhava com eles da humildade, caridade e espírito de missão. Tanto assim era que a eles se juntara e andava em preparo para partir para o Oriente na leva da quinta cruzada que Frederico II organizava.
Monsieur, o pai que fora combatente da primeira cruzada, viera de França para contribuir com as suas tropas nas primeiras conquistas e por cá ficara e estabelecera Casa e senhorio.
Ao seu nome as gentes locais, menos educadas e com o aparelho fonético mais aberto, adaptou o som e transliterou a escrita.
A Philipe, sendo o segundo filho, foi-lhe destinado o terço e a espada. No entanto era, por ora, mais o terreiro que a abadia que lhe ocupava o tempo, onde praticava regularmente exercícios de adestramento militar. 
Era, por tal sinal, o instigador da moral, um motivador no campo da batalha.
Acolhido em Almada, aguardava o dia em que, com os demais cavaleiros, embarcaria na pequena armada de barcos de vela que enfunaria a se juntar a uma outra maior.

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Ocioso na espera saía amiúde a largos passeios em que tomava profundos sorvos de paz, tranquilidade e momentos para reflexão. Acabou assim por conhecer todo o território vizinho.
Um dia, foi conhecer uma povoação ribeirinha. Um pouco de gente, que vivia primordialmente da faina ligada ao mar, ocupava as esparsas habitações.
Não encontrando aí motivo de interesse, passou para além das dunas: um ecossistema natural, simples e sensível que faz a transição entre o meio terrestre e o ambiente marinho servindo de bloqueio às infracções das subidas do mar por meio de vegetação endógena.
E, fez face a um extenso areal que se deixava molhar pelo chegar do Atlântico.
Não longe percebeu uma figura feminina. Alguém se entretinha a colher conchas. Tão graciosamente o fazia que colheu, do mesmo modo, o seu olhar curioso. “Uma donzela”, deduziu pela falta de touca ou rede nos cabelos.
Desmontou e foi-se aproximando mansinho, com o cavalo pela rédea. Não pretendia assustar a delicada criatura.
A jovem, no entanto, sentiu o surdo bater dos cascos na areia que sob o peso do animal gemia e, desdobrando a cintura, retomou a normal postura enquanto procurava o que ou quem por lá vinha.
“Um senhor e sua cavalgadura”, conferiu em pensamento. “Proeminente”.
Com efeito, a imagem que se aproximava não deixava margem a engano. 
Sobre a excelência do material das calças e da casaca de seda bordada trajava uma túnica de fino brocado sem mangas, adornada com um brasão de armas. Uma capa.
A vestimenta de passeio não dispensava, embainhada, uma espada de grande dimensão, manejada no combate a cavalo.
Manifesto cumpridor do código de cavalaria, mormente a coragem, a lealdade a generosidade, bem como a noção de amor cortês, foi dizendo:
- Nada receeis, sou de bem e venho por bem.
A sua voz, de notável timbre e dicção, soa apaziguadora e tranquilizante.
- De onde és? - Foi perguntando o cavaleiro.
E ela querendo dizer pouco, mas afinal causando mais interrogações: - Daqui e doutro lado, Senhor.
- E que outro lado é esse? Porque viajaste? – Encorajou.
- Minha mãe para aqui me trouxe para que meu pai nos tivesse a seu lado. Viemos de terras frias de onde meu pai, ilustrador, saiu para reproduzir em tela a glória guerreira do seu Senhor.
Suas vestes eram simples e limpas, de bom pano e delicado corte. A brisa erguia e desalinhava o longo cabelo claro que assim melhor ligava com os seus irrequietos olhos de água e pálida tez.
Fascinado com tão apelativa imagem; assim tão terna e submissa a falar, Ph. permitiu-se incomodar:
- Perdoa se pareço intrometido.
- Não me sinto intimidada. - Revelou - O vosso modo de falar e modelar atitude ensina que nada devo temer.
_ Alegro-me por te não causar temor. Não fosse assim e daria costas; jamais imporia a minha presença.
- Conta, então, mais sobre o teu país.- Pediu.
- Somos os filhos dos frísios e vivemos junto a uma outra costa. É sobretudo uma terra alagada pelo mar. Lá, como neste lugar, o mar domina. Há, porém, além das praias, dunas e marismas, vastos pastos e até mesmo densas florestas. Passamos curtos estios e gélidos prolongados invernos.
Ela falava, ele ouvia, Ela movia-se e ele seguia. 
Sentia algo novo, em crescendo, algo que dentro do seu peito já haveria e ele nem suspeitara.
Ph. tinha dedicado a sua mocidade, vigor e motivação a expulsar o invasor e agora, numa pausa do seu desempenho, sentia-se confortadamente invadido.
Ela sorriu e o intrépido soldado, sempre arrojado e indomável nas mais encarniçadas e sangrentas liças rendeu-se àquele encanto.
Soube que, ainda que o quisesse, não saberia como resistir.
Todo o resto da tarde passou ele a seu lado. Viu, admirou, comentou as suas conchas: umas pequenas e frágeis, outras mais robustas com cores metálicas.
Falou de si e o que fazia, soube dela o que pretendia.
Quando notou que a luz do dia em breve acabaria, galantemente despediu-se prometendo voltar no dia seguinte.
O caminho de regresso pareceu-lhe curto e o tempo nisso gasto sumiu-se; consumiu-se no turbilhão de sensações e na recordação daquele instante eterno em que a viu. A mente possuía-o. 
Descobriu em si um novo poder: o de poder amar.
Não era ela que era diferente, todas as outras é que eram entre si iguais.

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Passou a noite em desassossego, inquieto. Notou, e nunca antes o fizera, o bafio do quarto, a vetusta decoração, o peso bolorento das arcas que lhe acomodavam os pertences. Notou a estreiteza das frestas que não lhe anunciavam novo dia, o frio do chão lajeado, o caminhar desajeitado da ronda da guarda.
Longa foi a noite. O melhor dos homens está condenado a exaltação emergente, a pensares devocionais, ao explodir dos sentidos pela noite longa e solitária.
Os primeiros alvores encontraram-no já preparado para sair. A lua devolvia a luz ao sol nascente como um reflexo dos olhos entrega a paixão ao peito; a penumbra cedia e era esta a maravilha que mantinha os astros apartados.
Havia mandado preparar a montada e escondendo com a capa o corpo do fresco matinal, desatou numa frenética cavalgada. 
O seu olhar determinado revelava a pressa, o seu corpo dobrado, sacudido ao galope do animal, indicava anelo e forte ânimo.
Ela amanheceu como se deitara: pensativa, queria entender por que processo de alquimia passava a sua vontade; que prodígio a tomara que lhe mexia no sentimento; que cores da paleta da vida lhe cabiam na futura existência.
Encontraram-se no mesmo ponto do dia anterior. Ela não conseguindo esconder o enlevo, ele mostrando contentamento.
Os olhos, são num a casa do mel, o invólucro da lágrima, no outro são a terra do fogo, a pátria dos desejos. Mas por agora são silêncio que conversa, são temporais em espera de dar altura às ondas. São espelhos do pensamento, as portas da luz que canta ímpios impulsos trancados.
- Já sabia que te encontraria assim, em vela, e tão bela, sem defesa.
E nisto aproximava-se dela.
Ela esperou destemida, sem recuo, sem receio.
Então o vento soprou mais forte, fazendo embater neles dolorosos, sibilantes grãos de areia.
Num gesto protector, Ph. puxou a jovem pela cintura até si, enquanto a outra mão puxava a capa num intento de protecção, escudando os corpos e com isso cobrindo-os.
Ela agradeceu ao vento, ele benzeu a areia.
Ficaram deste modo unidos, colados. O peito dela suavemente a moldar-se ao seu, o ventre quente no dele escondido, as coxas, trementes, juntando-se às dele. Os rostos corados, carentes, vazados um ao outro.
A natureza, com sabedoria, trabalhara para adiantar o momento que a timidez, respeito e preconceito, tarde, talvez nunca, acontecesse.
Envolvimento arrebatador. O amor é movido por descobertas emocionais, por comunhão unificadora e comovedora de almas, por entregas físicas urgentes.
Foi esse o primeiro momento em que se remiram de perigo ou condenação. E os dois se tornaram um.
Os corpos dos amantes entendem-se fora deste mundo.
A capa, agora leito nupcial, foi colchão e foi coberta daquela primeira entrega, daquela dação em alegria, em que receberam, reunidos, as primícias do outro.
Apenas a fadiga os venceu. Viam-se de novo com certezas, sem roupagens, sem enganos. Ficou, como todo o seu ganho, o seu lado humano e a promessa dum perfumado amor perpétuo.
Se nela o olhar lampeja, o dele não é menos rutilante.
- Como te deixas prender por quem não é de prendas? Perguntou submissa.
- Por esta chispa que me ateaste, pela paixão que me pegaste…
E aduzia:
- Amo-te sem complexidades nem orgulhos. Amo-te porque não tenho outro caminho.
A este dia seguiram-se outros de encontros e cumplicidade, renovando de forma igual o seu amor diferente.
A paz no meio de conflitos latentes.

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Até que um dia… ele chegou de semblante grave e falar circunspecto. Ia partir
- O tempo que partilhámos é um nada de todo o tempo que nos resta partilhar; é o pó da estrada, do todo da estrada que juntos havemos de caminhar.
Ela fez de conta que não estava pálida de morte, fingiu que não caíra quando tombou no chão, simulou estar calma quando toda ela estremecia.
- Nunca imaginei, - iniciou – sentir no meu peito tamanha dor, nunca pensei que o amor tivesse a faculdade de me fazer sentir insane.
Perdida no lamento, mais não conseguiu do que:
- Assim de repente. Já! – Soluçou alto – E então o nosso amor para sempre?
- Será para sempre. É verdade que os nossos corpos se separam, e que a tua presença tão cedo não me consolará, mas o sentimento que por ti criei prevalece e dar-me-á motivo para ti voltar.
Amar dói. Dói pela ausência, por não saber.
- Ajuda-me nesta aflição - suplicou ele. Parto carregado com a imensidão do que perco; ajuda-me a suportar a distância que se avizinha, o tempo que já decorre. Vejo-te triste e pesada.
E ela:
- Carrego o teu coração. Carrego-o dentro do meu.- Disse num sussurro aflito e acanhado.
Ele retirou do corpo a túnica e colocou sobre os ombros dela; aposto na capa refulgia o brasão.
O brasão bipartido que haveriam de levemente alterar no século XV apresentava, no campo esquerdo, duas flores de lis azuis, sobre meio escudo prata, e meia águia bicéfala vermelha, armada de ouro, sobre meio escudo no campo direito e, como timbre, uma águia dourada de asas estendidas.
- Conserva-a. Pode servir-te. Nela podes me encontrar e, sobretudo, dela podes obter sustento.
Levando a mão ao dedo indicador puxou de lá um anel.
- Este é um anel peculiar, - ensinou – que se completa por duas partes. O sinete é removido dos encastres que tem o aro. Eu levo a chancela desembutida, tu ficas com o aro que só a ela pode receber.
Quando voltar, juntarei ao anel que fica este timbre da águia dourada de asas abertas.
Foi e levou a alegria.
Adeus é a despedida dos últimos dias e o prelúdio do que virá; é a dúvida e a dúvida tortura.
Muitas semanas se passaram. Cada dia nascido, era dia do seu peregrinar. Ia-se abeirar do mar, num aguardar incansável de ver as velas de barco voltar.
Também ela velejava: pela escuridão de uma longa espera no meio dum amor desperto, velejando com fé sozinha no bálsamo dum amor imenso, que não teve princípio nem há-de ter fim.
Saudade mais dolorida é a saudade do que ama. Saudade da presença ou da ausência consentida, do cheiro e da pele, do trocar de beijos e do corpo comovido. 
Saudade é não saber o dia que a nossa metade vem.
O tempo passou.
Numa dessas manhãs sentiu um enjoo que pensou ser devido ao mar por tanto nele o seu olhar navegar.
Mas outras náuseas vieram e outro sintoma lhe sugeriu:
Aquela paixão consumada, o amor em si vertido trazia fruto de vida, uma primavera de verdores, um campo de flores.
Os pais, pessoas de austera educação, vigilantes da conduta, vendo o estado em que estava, vendo a filha solteira, prenhe, trataram de a expulsar para longe, a esconder a sua vergonha.
Desolada, destroçada pelo rodar do destino, encontrou acolhimento num casebre perto de Almada com outros e outras deserdadas da vida, espoliadas da existência e dos direitos. Famintos que aceitavam as mais humildes e humilhantes tarefas na esmola de mais um dia.
Correram meses, arrumaram-se as estações e a inexperiente mãe subsistia no sustento duma risada da filha.
Sobreveio a doença, a fraqueza por pobre e pouco alimento.
Numa tarde de tormenta, em que a água, fustigada por ventos fortes despencava a rodos, a todos encharcava, a todos zurzia, surgiu a notícia que tinham chegado cavaleiros vindos do Egipto, de onde, não tendo obtido vitória, regressavam sob o peso de um aviltante acordo com o Sultão.
A mãe, pobre e plebeia, com a filha embrulhada em capa de nobre, correu à Praça e com o alor e coragem que só os desesperados constroem, segurando a túnica dum, perguntou com a voz embargada:
- E Don Philipe da R.M. chegou? Veio convosco?
Que não.
Uns dizem que pereceu a golpes de cimitarra, outros afirmam que voltou a Darque mas que horrorizado pelo sangue da guerra, pela desdita de amigos, desfigurado e mutilado recolheu ao Mosteiro de Palma, do qual seu irmão era Comendador, e lá pretendia permanecer em pobreza e penitência até ao último dos seus dias.
A alma é imaterial, não se vê mas em alguns é notória a sua presença.
Sujeita à carne que se corrompe e definha, ainda que em si seja imaculada e viçosa, pena a mágoa dos cativos.
“Agora nada mais resta”. Esclarecia-se a desditosa mãe.
O fraco lio que a prendia à vida, desatava-se ou rompia. A esperança, as horas, dias e todo o tempo em que confiara num reencontro desfazia-se e assim, de si o ânimo se despedia.
- Porquê meu amor? 
Porque te deixaste matar ou te ocultaste da vida? A vida só é perfeita se estiver a teu lado e ter a certeza que é onde eu quero estar enquanto respirar.
Seja qual for o desfecho, o amor verdadeiro, puro, de total e singela entrega, não morre. Se funesto, morre sim a vontade de si mesma, destroça o peito, aniquila o alor e sentido da vida; só.
De o amar estava segura, mas quem lhe segurava a vida?
Via-se num limbo e espreitava lá para baixo, percebendo o estrépito e o mau cheiro; ouvia o estrilho dos que pelo fogo padecem uma eternidade, inalava o odor do execrável enxofre. Sentia que para lá caía. 
Queria desviar a vista, pedia que ele viesse, que lhe torcesse o olhar, que a avive e com ela queira estar do outro lado deste acabar.
Perdido no tempo, criou-se a lenda, que a Caparica era quase erma e desolada quando por lá encontraram uma menina pobre e muito bonita, não se sabendo de onde vinha ou quem era.
Nada de seu tinha excepto uma capa sobre os ombros, que, ainda que se percebesse ser na origem de grande qualidade, estava desfibrada e gasta. 
Condoído, um velho deu-lhe abrigo e com ele viveu até que já mulher, aquele morreu. Ficou a viver sozinha e ali envelheceu. 
Quando se lhe acabou a vida, descobriram que a capa afinal era rica: dentro do seu forro encontrou-se uma verdadeira riqueza e, junto a si, uma carta dirigida ao Rei em que pedia que usasse o tesouro a beneficiar aquela costa para que levasse saúde e alegria para todos.
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A História destas personagens segue séculos depois ( na Costa de Caparica e em Bruxelas ) Trata-se de um amor intemporal.


Almada 16/05/2019
                                       
                                     

1 comentário:

  1. Como contador da 'estória' agradeço a divulgação e lhaneza de trato que, para comigo, tem. Cumprimentos

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