sexta-feira, 17 de maio de 2019

"Agora que o Sean Aprende a Ler" ( 2 )

Continuação de: A Lenda da Caparica - CAPA RICA Extractos de um conto inserido no livro " Agora que o Sean Aprende a Ler "

Texto e fotos cedidos gentilmente por J Maciel Costa, com os meus agradecimentos:


A Costa da Caparica, uma frente marítima de extenso areal, corre desde S. João até à Fonte da Telha.
No fim dos anos 70, chegando o verão, desaguava lá um mar de gente.
Com o advento da ponte a unir as margens do Tejo, maralha da grande urbe lisboeta e das cercanias, tombava naquele espaço onde erguiam altares de adoração ao grande círculo irradiante, o sol, que lhes apequenava os olhos e escaldava a pele: alçavam o guarda da sombra, estendiam toalhas – de banho e de mesa, pois não raros por lá comiam – estufavam o peito para alisar o descaimento e prostravam-se em submissão para que aquele deus lhes fustigasse as costas.
Em alguns sítios, em enchendo a maré, o difícil era encontrar um lugarzinho onde coubesse, junta, toda a família... e mais a cesta da pinguinha e do pastel.
Partilhavam esse espaço os que mais dele precisavam: uma gente marinheira que ganhava a vida por meio da arte xávega, uma forma de pesca artesanal de cerco, em que o xalavar, a rede aparelhada em forma cónica, é puxada desde a praia por um longo cabo.
À chegada, as embarcações e rede eram puxadas até seco por animais – bois - e força braçal que se compunha não apenas pelos pescadores e sua família mas também por muitos mirantes ocasionais que alegremente se juntavam aos demais no esforço da recolha. 
E esta era a fauna local.
A estes misturavam-se temporariamente outras gentes, de outros locais e distantes proveniências, peregrinos que arribavam ao santuário da luz quente, falando línguas diferentes, de corpos despigmentados, quase translúcidos: turistas.
Annejet veio como um destes.
A vila, andava crescendo em restauração, hotelaria, comércio e residentes permanentes e outros mais abastados, sazonais. Havia portanto onde tomar albergue, adquirir lembranças, onde passear e apreciar a gastronomia rica em bivalves marinados como amêijoas à Bulhão Pato ou as cadelinhas com alho.
Annejet porém, mais a mãe que queria escurecer, e mais a tia que tentava ganhar cor, ganhavam o dia na praia. Isso das comezainas era mais para o padrasto que sofrendo de um aleijão numa perna, preferia andar com os amigos a visitar todas as mesas, evitando, também assim, abaixar a perna da calça.
Jovem, bela e diferente, logo logo conheceu uma chusma de adolescentes da vasta comunidade estudantil que de todo o concelho ali ia a banhos e namoros.
A tia, que curiosamente até era mais nova, arisca e desembrulhada de conceitos foi a primeira a deixar-se conhecer e ser conversada pelos arremedos de macho latino que vendo- as, abotoaram-se com o espaço que à volta delas pudesse haver.
Uma bola desencaminhada, uma areia que respinga do pé apressado: “Sorry” e um risinho palerma fizeram a aproximação.
Em inglês se entendiam. Elas, fluente e desembaraçadas, eles resumidos ao presente simples… quando acertavam… porque muitas vezes aquilo nem tempo verbal conhecia. Em Portugal o ensino da língua francesa era, por essa altura, oficialmente predominante e academicamente nuclear.
Certo dia, já ela por ali andava há duas semanas, viu o grupo agitar-se, levantar-se e caminhar alvoroçado até às escadas de pedra que conduziam do largo passadiço à areia. Pareciam felizes e recompensados. Alguns braços despertos agitavam o ar em excessivo aceno.
Quem por lá descia sorria a gosto. Sem suspender o movimento, deixou-se prender e envolver pelos que aí vinham.
Choveram cumprimentos: longos abraços da rapaziada, apertados beijinhos da raparigada.
- Caramba! Andaste perdido ou quê? Não tinhas ficado de regressar no dia 15?
- E voltei! Só que depois fui com os pais uma semana a Sesimbra. Venho enfastiado de espadarte. – Foi dizendo - Mas o Ernesto sabia disso, telefonou-me. E onde é que ele anda? Não o vejo.
- Arranjou um trabalho para as férias. O artolas… depois de um ano de livros…
E foram conversando, perguntando e respondendo, dizendo, esclarecendo e contando, umas por cima da voz dos outros.
Em tom tranquilo e paciente o recém-chegado a todos dava uma palavra, com todos anuía, a ninguém contradizia. E esta era a primeira cor do seu carácter: …
A sua aparência e atitude era distinta dos demais. Sem nisso empenhar qualquer esforço parecia ter sobre os outros uma qualquer influência benigna. Junto a ele nascia uma certa calmaria, amansava a fúria de viver depressa, fútil, inconsciente e descompassada. Era como se um maestro erguesse a batuta e todo o executante aquietasse e suspendesse o ensaio. Aguardava-se. 


Aos poucos aquietaram-se e conduziram-no até ao ponto de onde partiram. Perto dela.
Pedro, um amigo miúdo de corpo e olhos, miudinho na maneira ser mas de enorme afeição e amizade para com os outros, chegou-se a ele e tentando rodear-lhe os ombros, com rosto sério e fala entaramelada, disse:
_ Aquela, - apontava para Annejet – é minha namorada, é holandesa – como se isso fosse fazer diferença – e por favor não lhe deites o teu feitiço.
Olhou na direcção indicada e notou-lhe a beleza. 
“ Hum… uma estrela em pleno dia ?”
“ É bela: admiro-a”
Há ali um fogo que apenas ela aprisiona,
Um perfume de cristal em si vertido.
Uma chama confinada que, se solta, apaixona.
O altar pagão onde o crente ajoelha vencido.
- Que é isso de feitiço, menino? Olha que não te entendo.
- Tu sabes… agradas a todas. Já nem sei o que digo, desculpa.
- Ai, ai. – Repreendeu amavelmente – Tu e as tuas paixonetas… Guarda os receios num saco e com eles a tua ninfa. Isto é verão, tempo de abracinhos descomprometidos. Chegando Setembro… uma dorzinha no peito, uma noite mal dormida e pronto, ficas pronto para outra.
Sai o pássaro da clareira do bosque procurando uma fonte escondida, sabendo que caem mais depressa as folhas multicoloridas que as de verde, apenas, vestidas.
Estava vestido a férias: usava sobre o corpo uma singular túnica de linho branco onde no peito se percebia uma pequena marca azul; bermudas de ganga, igualmente brancas, descobriam-lhe as pernas do joelho para baixo; como calçado umas socas de madeira e borracha de rastro, que se mantinham nos pés por meio duma ponte de couro pintada de branco. No pescoço amarrava um lenço azul de algodão e, trazia alçado às costas uma mochila pequena, impermeável, do tipo militar que pedira para tingir de azul.
Desta retirou uma toalha e recolheu ao alforge o que ia despindo.
Rosto simétrico, um tanto bronzeado, encimado por longo cabelo que lhe caía até aos ombros, com leve brilho metálico que lhe causava o sol do verão, o iodo e sal marinho que as ondas da praia lhe emprestaram e impregnavam a pele.
Não havia sido, em verdade, a água do mar uma das primeiras terapias usadas pela humanidade tanto para fins estéticos, como para fonte de bem estar e saúde?
O corpo, despido de preconceitos e agora recolhido apenas num calção de banho, apresentava a mesma tonalidade.
A tia de Annejet, despudorada, aplicava na sobrinha rápidas e notórias cotoveladas. Queria com isso significar que apreciava o que via.
Annejet, doendo-se e também incomodada pelos movimentos reveladores, pespegou na tia um olhar suplicante e uma palavra nativa:
- Wat? – O quê?
E a tia: - Het beste lanschap van zee kust!
A jovem sorriu-se disfarçadamente pela alegoria, a maneira indirecta de expor a ideia sob a aparência de outra.
Mesmo não concordando na forma acordava no conteúdo.
Até porque, parecia-lhe, era uma imagem já antes vista ou por si passada. Não sabia dizer quando, mas sentia no seu mais profundo ser que algo assim já acontecera. Sentiu um arrepio, mas não por medo.
Um vulto atrasado, o reflexo impregnado dum momento anteriormente vivido.
Sacudiu o pensamento e erguendo-se foi ao banho salgado.
Pedro, que estava à espreita, foi logo atrás. Ela olhou-o e seguiu em frente, indiferente.
Nem uma palavra cúmplice, um gesto ou atitude partilhada. Somente ela ia, e ele por perto, guiado, mesmerizado por inaudíveis notas de uma flauta invisível.
“ Hum… essa da namorada… é mais um desejo, não uma coisa acontecida ”.
Não tardou muito e já todo o grupo se comprazia na água amenizadora que lhes esfriava os corpos quentes do brasido. 
Saltos, mergulhos, espadanar e chapinhos componham os folguedos e divertimento da turma adolescente. Alguns quiseram puxar pelo corpo e desataram em vigorosas braçadas para além de pé. Ele foi um e ela também lá foi.
Perto um do outro, fazendo movimentos circulares de braços e pernas para conseguir a flutuação, respiravam com brevidade e recuperavam o fôlego. Então encararam-se pela primeira vez.
- Hi! – A jeito de cumprimento.
- Hi, I’m Annejet.
“ Jesus, que doçura de voz! Que colmeia premiada originara este mel? “
- Excellent crawl swimming of yours – Disse, sem saber o que dizer.
- And yet you´ve beaten me. – Elogiou-o.
- Porque eu tinha uma forte motivação: julguei estar a nadar junto a uma sereia. – Ele pensava assim dar-lhe a melhor vénia.
Entretanto chegavam a tia e o Pedro causando fim ao têt-à-têt.
Observando as consequências, analisando os dados, previdentemente para travar ou pelo menos diminuir a velocidade dos danos que causava o elevar do nível das águas do mar, a erosão costeira que desfazia a falésia, absorvia as dunas e tragava areias, fez-se construir frente à zona habitacional robustos esporões de rocha que deram origem a pequenas porções de praia confinadas aos limites das obras.
Essas praias, em boa maioria, tomaram o nome de bares e restaurantes que lhes davam apoio de retaguarda.
As praias do Tarquíno, o Dragão Vermelho, Delícias da Praia eram algumas delas.
Numa dessas a que o jovial grupo acorria, o Laurentino muitas vezes ajudava os pais atrás do balcão, ou então servia petiscos e cerveja fresca na esplanada em horas de maior afluxo de clientes.
O Laurentino era entre os amigos aquele que juntamente com o Ernesto, mais privava fora da escola com o recém-chegado. Foi com ele que ela foi ter.
Tinha passado o resto do dia a procurar saber do novo banhista. Tivera, não obstante a persistência, pouco sucesso.
Que se tinha matriculado na escola havia apenas 3 anos e ninguém conseguia dizer de onde vinha; que era aluno de honra e feitos atléticos pese embora a descontração nos estudos; capitão das equipas, vencedor de provas individuais; que lia bastante fora das matérias de aula; ai jesus das meninas e notado pelos docentes, respeitado por funcionários e colegas e parceiro recorrente em assuntos da direcção. Que do seu lado privado não sabiam.
- Pergunta ao Laurentino. – Aconselharam.
- Bem… - e coçava a cara o Laurentino – que sei eu mais que aquilo que te disseram? Pouco, acho eu.
Que era duma família de origem antiga, cheia de tradições. Que, por não ser o primogénito tivera uma de duas escolhas: o seminário aos 10 anos, ou a academia militar aos dezoito. Que tivera preceptor do clero e que isso se notava. Que em boa verdade não sabia de onde vinha, apenas sabia que ia muitas vezes aos Açores e ao Minho; que ainda agora de lá chegava.
- No more. – Tentou concluir num inglês truncado.
- Any girlfriend? – Atreveu-se acabrunhada.
Nada que isso se pudesse chamar. Uma ou outra mais chegada, fugaz.
“ Se agradar a uma, vou magoar muitas mais” usava dizer.
Abominava magoar alguém sabendo que o fazia.
Estava como que aturdida. A sua sempre desobrigada mente, a sua vontade invariavelmente por si comandada via-se agora inexplicavelmente comprometida, assoberbada em entender, saber, com quem lhe parecia querer cruzar-se a vida.
E quanto mais procurava menos encontrava.
Na manhã seguinte, já de longe tentava penetrar com o olhar por entre a muita gente que se encontrava no areal, no seu lugarzinho do costume, a ver se via quem queria. Mas era cedo. 
E para mais ele, que chegava nem sabia donde. Viria dos lados de Almada.
Pela tarde, depois de uma ligeira refeição, composta por uma salada de vegetais e fruta e boa quantidade de água, tomada sem sair da praia, pediu-lhe:
- Passas-me o protector solar nas costas?
A sua pele era delicada e alva; um descuido e sobrevinha um escaldão.
Claro que sim, fazia-o “delighted”.
Sentiu sob as polpas dos dedos dele o leve tremor que a sacudia.
E nela, das suas fibras, tange um arremedo de sextilha:
A viagem das tuas mãos em meu corpo desliza.
Sinto-as perfeitamente. 
Percebo que os teus toques,
em ousada pesquisa,
cinzelam-me na tua mente
sem enganos, sem retoques.
E uma paixão assim, quando chega não avisa.
Não refeita da devassa que sentiu que ele fizera ao seu ser desagasalhado, balbuciou: - Do you need some? 
E apresentava-lhe o creme.
- Niet, dank.
- Spreken nederlands? Surpresa!
- Não. Apenas algumas palavras que devo ter aprendido em tempos. Já nem sei quando nem onde. Tenho a vaga lembrança que precedeu uma crucificação voluntária em que levei a cruz e os pregos.
Não entendeu. Um enigma lançado pela pouco visível pessoa.
Confusa: - Ah! E o creme, não queres mesmo?
- Não preciso, incumbo dessa protecção os meus pigmentos.
Depois… houve embaraço. Não sabiam como seguir a conversa e então acariciaram-se, sem perceber, com os olhos.
E constituiu isso o melhor momento, até então.
Desde então passaram a criar ocasiões para estarem sós. Falavam disto e daquilo um nada e nada daquilo que acima de tudo queriam.
Caminhavam juntos, no sítio onde a onda desmaia; os corpos quase se tocando, andando perto… quase juntos, sabendo que geminadas andavam, entrançadas, as suas almas.
Uma tarde, Annejet estendeu a mão esquerda para que lhe notasse as pontas dos dedos. Tinha envernizado a unha do polegar e a unha do dedo mindinho de rosa claro.
- Do you know what does this mean? – Perguntou.
- Nope. – Disse brando e suspeitoso.
Branda e descarada, ensinou: - It means I love someone but he didn´t realize…yet. 
- Should it not be too odd on a man’s finger and I could wear something like that as well. – Replicou surdamente enquanto escapulia.
Não que quisesse fugir ao tema, só porque havia silêncios que falavam mais alto que a voz.
No verão há sempre um dia em que chove. Dá-nos um banho diferente. 
De repente, uma nuvem grávida aparece e, indecente, derrama as águas sobre a gente.
E choveu! Num fim de tarde. 
E todas e todos correram ao refúgio do guarda-sol.
Mas esse não é feito para isso e a água trespassa o pano. Nenhum escapou ao banho e mais do que isso, houve roupas e pertences encharcados. Acabou-se o dia.
Annejet pensava como iria resolver a questão de entrar no hall do hotel com o cabelo assim molhado, de corpo desnudado. Que embaraço.
Nada que o seu paladino não a adivinhasse, não entendesse.
Resolveu. Abriu a mochila impermeável e de lá tirou a solução.
Entregou-lhe a túnica branca marcada por minúscula letra azul vibrante.
- Leva-a como agasalho, usa-a e guarda-a. Tem nela o branco dos anjos e a ponta azul do paraíso.
A partir de agora é tua. Condizem uma com a outra.
Ela, contente, mas previdente : - Então e tu? Como vais para casa? Não é verdade que tens de viajar até lá chegar?
- Hey! Tanta pergunta. Tanta cautela comigo. 
E tranquilizou: - Vou ali ao Laurentino e ele há-de emprestar-me uma camisa. Como passa aqui o verão, tem de certeza muito para vestir.
No último dia em Portugal, na véspera de partir o coração, de quebrar o encantamento, ele pediu-lhe a morada e ofereceu um anel.
Coisa simples que ele urdiu com missangas. Era branco, estreito em baixo e ia alargando até formar um quadrado onde a azul bordara a letra M.
- M de quê? _ quis saber a ofertada.
- Nada de interessante; uma inicial dum nome da minha família.
Nessa noite, pela primeira e única vez a mãe deixou-a sair a passear.
Mas não iam sós. Uma ceifeira da dor, mondadeira do desgosto por eles rondava, teimava em usar a gadanha naquela ceara de amor.
Que tememos nós, se estamos sós,
à mingua da beira do outro?
Onde vamos nós, um dia após
da ida, partida dessoutro
cuja barca não espera,
pois há muito intuía 
que a vida curta desespera
por um amor de um dia.

Os seus rostos aprisionavam-se cada um refém do outro; mãos dadas, engalfinhadas, temendo a chegada da hora.
Mas o tempo escapava e antes que fossem embora…
- Espera, – pediu ela – vem até aqui que quero mostrar-te um quadro.
A areia molhada recebia com precisão qualquer leve pressão. Ela pediu-lhe que pressionasse o chão e lá deixasse a marca dos seus pés, ligeiramente afastados.
Causa e efeito. Deu um pulo e estava feito.
Então ela, suavemente imprimiu os dela entre os dele. Afastou-se um passo e envolveu o baixo relevo num coração desenhado a dedo. 
E Corou.
E ele percebeu…
Percebeu que era frágil. Reconhecia as fraquezas.
Tinha porém este temperamento; marcas que lhe gravaram na alma em tempos e que o tempo aprofundou: era, para alguns um farol, a carta de navegação; se ousar sair do itinerário, inocentes se perderão.
Então: manteve a vida a prumo.
E dando-lhe antes um aceno, um doído olhar final àquela confissão, foi-se embora.
A viagem de regresso à Holanda, longa de dois dias em carro, foi um martírio. Nada conseguia comer de apertado que tinha o estômago, nada a distraía de pesada que tinha a mente. A posição contínua no carro, nem a incomodava de dorido que estava o espírito. 
Vestiu nos dias assim passados a preciosa branca túnica ornada da pequena letra ocultada de cor azul.
Entre as mãos enclavinhadas, uma folha de papel com um endereço anotado. Era o fio que lhe prendia o ser, a amarração a um cais sonhado.
Na cabeça surgiam em burburinho as letras palavras que lhe escreveria, o que dizer, para o fazer saber, em quantas saudosas milhas o seu amor crescia. 
Num dedo o elo dele.
Ele nem foi à praia por uns dias. Não conseguiu.
Quando voltou viram-no macambúzio. Sorumbático vagueou sozinho por pontos previamente decorados.
- Viver também pode ser triste. – Confidenciou aos amigos.
Sarcástico Pedro dizia: - Deixa, é um amor de verão… Quando chegar Setembro.. um dorzinha no peito, uma noite mal dormida e pronto, ficas pronto.
O malandro julgava tirar a desforra e enganava-se.
--
Uma semana depois, Annejet recebeu devolvida a carta que lhe tinha enviado. No rosto do sobrescrito, a vermelho estampado, trazia escrito: “ Desconhecido nesta morada “
O mundo fechou-se e ela nem à porta chegou.
Passados 6 anos, já adulta, Annejet voltou a Portugal. Inconformada, foi onde poderia obter dele notícias.
Ao restaurante de praia dos pais do Laurentino.
Que alegria, que satisfação; bem se recordavam dela menina, sempre educada sempre acompanhada por ele e pela tia.
O Laurentino não estava, fizera-se marinheiro e andava no mar do Canadá. Era agora um oficial da marinha mercante. Estava casado e já lhes dera um neto.
Dele nada sabiam, apenas…
Tinham com eles guardada uma carta que ele lhes deixou para que a entregassem a ela. Tinha-lhes dita, na altura, que ela viria um dia.
“Se me lês é porque tudo está bem, que se acertam os ponteiros.
Navegaste alegremente até à baía do meu peito, julgando inocente aí encontrar abrigo. 
Porém as águas do meu porto são profundas e escondem perigos, são onde começam os abismos. 
Na enseada que aportaste apanhou-te a tormenta, a tempestade imperfeita; o vento arrasou-te as velas quando querias calmaria; lamento.
Se desejas um culpado, culpa o dia em que nasci. Mas condescende por um instante, repara benevolente que nem nisso tomei parte.
Mas tudo isto não é mais que um momento, é um dente lascado da engrenagem aveludada que um dia nos governará a vida.
Minha mãe para me ajudar, deu-me a ler o livro do tempo e foi aí que encontrei como encontrar a nossa hora. Descobri o hiato temporal onde por nós passa o futuro. Já sei o que fazer, como ludibriar o destino, na parte que alguém, descontente, me traçou no passado. 
Lembras o dia que falei numa crucificação, e da cruz que levei? Pois desta vez enganei-os, não levo comigo os pregos.
É por esta razão que te digo, com convicção asseguro:
Um dia eu vou-te buscar.”
 
Corria outro dia quando acordou. Estremunhada lançou pernas e braços fora das cobertas e olhou o outro extremo da cama: Ali estava, não fora sonho. Ainda ontem nem imaginara.
Vinha dele um manto de ternura, a imagem da paixão e dizia… 
***
Annejet em holandês significa adorável e graciosa e era nome bem apropriado para ela. Dócil e amável de índole, agradável, com graça de figura. Já assim o era aos 17 anos de idade e ainda, decorridos 20 anos, assim permanecia, só que mais maturada, mais intensa na forma e no carácter.
Era como uma rosa branca que floresce, desabrocha e cresce mas, mesmo que polinize, é sempre branca, é sempre flor.
Nesse dia tinha caminhado até Place de l’Albertine, de onde, num salto a pé coxinho estava no parque Mont des Arts. Não mais longe tinha a Biblioteca Real onde podia facilmente recolher em literatura o que fosse preciso.
Gostava de ali ir quando necessitava de mentalmente arranjar espaço para rever o material que havia de enviar para a sede do seu ‘krantenpapier’.
A sua vida profissional de corresponde em Bruxelas deixava-lhe tempo suficiente para respirar a vida, para rever os passos. Também... tirando o editor que por vezes lhe azucrinava os ouvidos e lhe enchia a caixa de correio electrónico, não tinha, a bem dizer, a quem mais prestar contas.
Escolheu um dos bancos de madeira que se escondia num recesso dos arbustos em frente a folhosos plátanos cujos troncos pintam até meio de um produto fito acético colorindo-os de branco.
Daí o seu olhar caía por uma ou outra vez em quem caminhava no passadiço de lajes passando frente ao ‘Blue Box’, de singular aspecto: um paralelepípedo vidrado.
O Monte das Artes pela sua central e elevada posição, quer pelos diversos edifícios e monumentos circundantes quer por todos os outros que do alto se pode avistar é um ponto de grande interesse turístico. Num único quarteirão junta arte e cultura em ambiente de charme e relaxe.
Era sempre uma distracção e exercício de dedução procurar entender de onde provinha, que nacionalidade teria este ou aquele visitante.
Nesse dia, num desses olhares de soslaio notou que alguém parara e mantinha sobre si atenção. Não era insultuoso ou algo que se parecesse; olhava educada e amavelmente. Um leve sorriso parecia ir surgir a cada momento.
- Pardonnez-moi,- desculpava-se – mais je la connais!
Semi-espantada, meio admirada, arrastadamente disse:
- Oui…nous nous connaissons, je crois!
- Oui, je dis! Conhecemo-nos. Estou aqui por ti.
Aquele modo breve e claro, determinado, confiante de afirmar… aquele antigo olhar naquele inalterado rosto…
Claro!
- It´s you, it´s you,- disse ela em alegre crescendo – blow me!
E como a celebrar a epifania, nesse altura desatou a repicar o carrilhão do Relógio de Sol de Kunstberg que ali mesmo ao lado lustrava uma fachada. As suas figuras, entravam e saiam de cada nicho a acompanhar o toque das horas e pareciam rejubilar.
*
*
Duas décadas antes, a mãe de Annejet, viúva, casara em segundas núpcias com um arquitecto português que havia demandado as terras baixas procurando melhores proveitos e trabalho sustentado.
O emigrante, orgulhoso da sua terra, do seu sol, bonomia das gentes e da boa e farta mesa, tratou de aí levar a férias a sua recente família. 
E Annejet conheceu um pedaço de Portugal.
E Annejet viveu um pedaço.
Todas as ruas têm esquinas. Por vezes nelas um encontro encarrega-se do reencontro em que um coração gentil pula de palpitações, refaz-se e amplia ecos de recordações.
Quando se escoou o alarido que o relógio de sol fizera, ela de olhos luzidos, escarlate de emoção, apenas disse:
- Porque vieste ?
- Já antes to disse. Já o escrevi.
E em tom triunfal…
- Resgatei-me, rasguei os manuscritos. Desci do cruzeiro.
- Venho buscar-te!
                         
Corria outro dia quando acordou. Estremunhada lançou pernas e braços fora das cobertas e olhou o outro extremo da cama.
Ali estava, não fora sonho. Ainda ontem nem imaginara.
Estava ali na sua frente o motivo da presente falta de dor.
Vinha dele um manto de ternura, a imagem de outrora, o preencher do vazio em que antes sucumbira e que agora calado lhe dizia: “ Sou eu mesmo meu amor”.
- Quero guardar em mim o infinito deste instante, quero que não fique em ti a nódoa de um pior momento. Sabes, quando à poucos anos nos vimos, não nos vimos, revimos; quando julguei que te encontrei estava sim a reencontrar, foi a altura em que o tempo reuniu as nossas vidas.
Ressoa o passado que em si habita
como dança em chão de sobrado,
ou corda tensa dum acorde inacabado,
e renovado, de si escorre e não hesita.
Julgando, por fim entender…
Procurou a túnica de linho que ele lhe dera e não a viu. No seu lugar estava uma capa que, ainda que se percebesse ser na origem de grande qualidade, estava desfibrada e gasta.
Num relance intemporal surgiu-lhe uma visão dum passado inacabado. Algo que alguém, lá, fosse onde fosse, lhe pedia para resolver.
Por impulso incompreensível correu a abrir a sua caixinha de joias:
Na sua relíquia de missangas, o frágil anel que ele lhe oferecera, chispava agora imponente uma águia dourada de asas estendidas.
*
A girândola da vida repetia o trajecto, pois que, circulando sobre si mesma fez o regresso ao princípio.
- Dás-me uma filha?
- Dou-te quantas quiseres, Philipe.
FIM


Almada-17-05-2019

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